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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ALESSANDRA PINTO ANTUNES DO VALE O CONTO DE APEPI E SEQUENENRA (REINO NOVO, XIXª DINASTIA): UMA ANÁLISE HISTÓRICO-LITERÁRIA NITERÓI 2013 ALESSANDRA PINTO ANTUNES DO VALE O CONTO DE APEPI E SEQUENENRA (REINO NOVO, XIXª DINASTIA): UMA ANÁLISE HISTÓRICO-LITERÁRIA Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Ciro Flamarion Santana Cardoso NITERÓI 2013 2 ALESSANDRA PINTO ANTUNES DO VALE O CONTO DE APEPI E SEQUENENRA (REINO NOVO, XIXª DINASTIA): UMA ANÁLISE HISTÓRICO-LITERÁRIA Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. BANCA EXAMINADORA _________________________________________________ Prof. Dr. Ciro Flamarion S. Cardoso – Orientador Universidade Federal Fluminense _________________________________________________ Prof. Dr. Mário Jorge de Motta Bastos Universidade Federal Fluminense _________________________________________________ Profª. Drª. Sônia Regina Rebel de Araújo Universidade Federal Fluminense _________________________________________________ Prof. Dr. Moacir Elias Santos Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE) Niterói 2013 3 AGRADECIMENTOS: Em primeiro lugar, agradeço a Deus por ter me dado forças para prosseguir mesmo quando todas as dificuldades encontradas pelo caminho pareciam impossíveis de ser superadas. Agradeço aos meus pais, Dalva e José Alexandre, pelo carinho e pela dedicação ao longo de toda a minha vida e, principalmente, pelos sacrifícios pelo qual passaram para que eu pudesse chegar até aqui. Eu reconheço tudo o que por mim fizeram, valorizo e os amo ainda mais por isso. Eles sempre foram e sei que sempre serão os meus maiores incentivadores, acreditando e lutando pela realização dos meus sonhos junto comigo. Agradeço aos meus padrinhos, Irene e Casimiro, por serem sempre tão presentes em minha vida, por se alegrarem pelas minhas conquistas e me incentivarem sempre a ir mais além. Agradeço a toda a minha enorme e amada família, tios e tias, primos e primas, por transformarem todos os momentos em que nos reunimos em uma grande festa. Em especial, agradeço às minhas primas Adriana, Patrícia e Priscila, por serem as irmãs que Deus me deu, por me incentivarem a enfrentar e vencer cada desafio e por estarem sempre ao meu lado, não apenas nos bons momentos, mas principalmente nos momentos de dificuldade, me dando todo apoio do mundo e por terem me ajudado no momento em que mais precisei. Obrigada por tornarem minha vida mais fácil de ser vivida! Amo vocês! Agradeço ao professor Ciro F. Cardoso, por me orientar da graduação até aqui, ensinando-me quase tudo o que sei sobre o Egito Antigo e por ser um professor no sentido mais amplo do termo, transmitindo conhecimentos com amor e dedicação à profissão. Sobretudo, agradeço por ele não ter me deixado desistir do sonho do 4 Mestrado quando pensei em jogar tudo para o alto, mostrando-me ser possível chegar até o final. Como orientanda e aluna posso dizer que o professor Ciro não é apenas um grande historiador, mas um professor de verdade e um exemplo a ser seguido. Agradeço aos demais professores da área de História Antiga da Universidade Federal Fluminense, Adriene Baron Tacla, Alexandre Carneiro, Julio Gralha, Manuel Rolph e Sônia Rebel, pelo incentivo e pela transmissão de conhecimentos ao longo de toda a minha vida acadêmica. E aos professores da área de História Medieval que de algum modo também contribuíram para a minha formação, Edmar Checon Freitas e Renata Vereza. Faço um agradecimento especial à professora Maria Fernanda Bicalho e ao professor Mário Jorge, por terem contribuído para o desfecho positivo do meu Mestrado. Agradeço aos colegas de área e amigos egiptólogos, Gisela Chapot, Liliane Cristina Coelho, Moacir Elias Santos, Patrícia Zulli, Rennan Lemos, e tantos outros que conheci ao longo de minha caminhada acadêmica, pelas trocas de conhecimento, pelo incentivo, pelas dúvidas tiradas e por estarem sempre tão dispostos a me ajudar. Agradeço às grandes amigas que conheci na Universidade Federal Fluminense, Bruna Milheiro, Geiziane Costa, Keila Lima, Mariana Virgolino, Milena Sanandres, Nathalia Caride e Paula Cresciulo, por estarem ao meu lado não apenas academicamente, mas principalmente por participarem da minha vida e por me darem tanto apoio nos momentos de dificuldade. Agradeço aos amigos e colegas de Mestrado por terem compartilhado comigo os dois últimos anos – ou parte deles – e que de algum modo contribuíram para o meu amadurecimento, não apenas acadêmico, mas muitas vezes como pessoa, Anna Carla Monteiro, Marcio Felipe da Silva, Mariana Virgolino, Marcelo Coutinho, Pedro Peixoto, Rafaella Sousa e Renan M. Birro. 5 Gastaria muito espaço agradecendo nominalmente aos inúmeros amigos que fiz e cultivei ao longo de minha vida, mas é certo que guardo em meu coração aqueles que são sempre presentes, principalmente os que me demonstraram o sentido da verdadeira amizade não me abandonando nos momentos em que mais precisei de apoio, compreensão e incentivo. Agradeço à doutora e amiga Ana Maria Medeiros, pois sei que sem o seu auxílio em meus momentos de fraqueza eu não teria chegado até aqui. Enfim, agradeço a todos aqueles que de alguma forma torceram e/ou contribuíram para o meu sucesso, através de orações, pensamentos positivos e palavras amigas. 6 “Mantenha seus pensamentos positivos, porque seus pensamentos tornam-se suas palavras. Mantenha suas palavras positivas, porque suas palavras tornam-se suas atitudes. Mantenha suas atitudes positivas, porque suas atitudes tornam-se seus hábitos. Mantenha seus hábitos positivos, porque seus hábitos tornam-se seus valores. Mantenha seus valores positivos, porque seus valores... Tornam-se seu destino”. Mahatma Gandhi 7 Resumo: A contenda de Apepi e Sequenenra encontra-se preservada em uma única versão: o Papiro Sallier I. Esse documento foi redigido durante a XIXª dinastia, tendo sido escrito no período de reinado do faraó Merenptah (c. 1213-1203 a.C.). Apesar de escrito no Reino Novo, o Conto de Apepi e Sequenenra aborda, ficcionalmente, um episódio de meados do século XVI a.C., envolvendo personagens históricos do final do Segundo Período Intermediário: o faraó hicso Apepi, da XVª dinastia, e o rei Sequenenra, da XVIIª dinastia tebana. Através dele é possível levantar alguns interessantes questionamentos, dentre os quais dois se destacam: (1) a disputa entre governantes – Apepi, hicso, e Sequenenra, egípcio; (2) e a oposição entre deuses, nesse caso especificamente Amon-Ra e Seth (Sutekh, para os hicsos), paralela à dos reis que lhes prestavam culto monolátrico. Palavras-Chave: Egito Antigo – Domínio hicso – Monolatria 8 Résumé: Le conte de Apepi Sequenenra est conservé dans une seule version: le Papyrus Sallier I. Ce document a été rédigé au cours de la Dix-Neuvième Dynastie, ayant été écrite durant le règne de le pharaon Merenptah (c. 1213-1203 avant J.C.). Bien que rédigé dans le Nouvel Empire, le Conte de Apepi et Sequenenra, parle fictivement de un épisode de milieu du XVIe siècle, impliquant des personnages historiques de la fin de la Deuxième Période Intermédiaire: le pharaon hyksos Apepi, de la quinzième dynastie, et le roi Sequenenra, de la dix-septième dynastie thébaine. Grâce à lui, vous pouvez soulever quelques questions intéressantes, dont deux se distinguent: (1), l’opposition entre les gouverneurs – Apepi, hyksos, et Sequenenra, égyptien; (2) et l'opposition entre les dieux, dans ce cas spécifiquement Amon-Ra et Seth (Sutekh, pour les Hyksos), parallèlement à des rois qui les adoraient monolâtriement. Mots-Clés: L'Egypte Ancien – Domaine Hyksos - Monolâtrie 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO _______________________________________________________ 14 CAPÍTULO I – CONTEXTO HISTÓRICO E CONTEXTO LITERÁRIO ___________________19 1.1. O CONTEXTO HISTÓRICO ______________________________________19 1.1.1. A DOMINAÇÃO HICSA E O SEGUNDO PERÍODO INTERMEDIÁRIO ______ 19 1.1.2. A EXPULSÃO DOS HICSOS E O REINO NOVO ___________________ 23 1.2. O CONTEXTO LITERÁRIO ______________________________________ 28 1.2.1. A LITERATURA EGÍPCIA __________________________________ 28 1.2.2. A ESCRITA E A LÍNGUA EGÍPCIAS ___________________________ 36 CAPÍTULO II – A CONTENDA DE APEPI E SEQUENENRA _________________________46 2.1. APRESENTAÇÃO DA FONTE ____________________________________ 46 2.2. O TEXTO E SUA ESCRITA ______________________________________49 2.3. CONTEXTUALIZANDO ________________________________________ 51 2.4. A QUESTÃO POLÍTICA ________________________________________ 58 2.5. A QUESTÃO RELIGIOSA ______________________________________ 62 CAPÍTULO III - ANALISANDO A CONTENDA DE APEPI E SEQUENENRA _______________68 3.1. ANOTAÇÕES AO TEXTO ________________________________________71 3.2. ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS____________________________ 75 3.2.1. A METODOLOGIA DE LUCIEN GOLDMANN: A SOCIOLOGIA GENÉTICA___75 3.2.2. A METODOLOGIA DE TZVETAN TODORV: A POÉTICA ESTRUTURALISTA _77 3.2.3. A METODOLOGIA DE ALGIRDAS JULIEN GREIMAS: O QUADRADO SEMIÓTICO_________________________________________________84 3.3. ANÁLISE DO TEXTO E APLICAÇÃO DO MÉTODO_______________________ 87 3.3.1. A SOCIOLOGIA GENÉTICA NA CONTENDA DE APEPI E SEQUENENRA___ 87 3.3.2. A POÉTICA ESTRUTURALISTA NA CONTENDA DE APEPI E SEQUENENRA. 91 3.3.3. O QUADRADO SEMIÓTICO NA CONTENDA DE APEPI E SEQUENENRA___ 95 CONCLUSÃO _______________________________________________________102 10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS_________________________________________105 GLOSSÁRIO _______________________________________________________ 111 ANEXOS _________________________________________________________ 114 1. QUADRO CRONOLÓGICO GERAL _________________________________ 114 2. O CONTO DE APEPI E SEQUENENRA – HIERÓGLIFOS E TRANSLITERAÇÃO ____121 3. OBSERVAÇÕES DO TRADUTOR ___________________________________128 4. ANÁLISE DA FONTE POR BLOCOS SEMÂNTICOS _______________________129 11 ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES Fig.1 – Segunda Estela de Kamosis (Kamés), comemorando sua campanha vitoriosa contra os Hicsos__________________________________________ p.26. Fig.2 – Pedra de Roseta ___________________________________________ p.39. Fig.3 – Mapa do Egito e regiões adjacentes____________________________ p.52. Fig.4 – Mapa do Egeu, Egito e Oriente Próximo_________________________ p.53. Fig.5 – Múmia de Sequenenra______________________________________ p.56. Fig.6 – Quadrado Semiótico________________________________________ p.85. 12 ÍNDICE DE TABELAS Tabela 1 – Sintaxe Narrativa – Sequência 1__________________________p.92-93. Tabela 2 – Sintaxe Narrativa – Sequência 2____________________________ p.93. Tabela 3 – Tabela representativa da aplicação do Quadrado Semiótico sobre o aspecto político analisado nesta pesquisa______________________________ p.97. Tabela 4 – Tabela quantitativa de títulos atribuídos a Sequenenra e Apepi ao longo do conto_______________________________________________________ p.98. 13 INTRODUÇÃO Por muito tempo o estudo da História Antiga foi desvalorizado e deixado de lado no Brasil. Hoje, este é um campo de pesquisa em constante crescimento, cujo aumento contínuo e significativo no número de pesquisadores da área tem contribuído consideravelmente para o desenvolvimento de estudos acerca deste período histórico referente às diversas sociedades do passado. Apesar de grande parte dos especialistas em História Antiga brasileiros dedicarem-se ao estudo das civilizações clássicas, grega e romana, a Egiptologia – que é o que aqui nos interessa – e o estudo de diversos outros povos da Antiguidade também vêm crescendo muito no país. A história do Egito Antigo sempre se defrontou com um considerável número de curiosos e interessados em todo o mundo, que, fascinados pelos esplendorosos vestígios deixados, mas não suficientes para esclarecer tudo acerca da existência daquela civilização, têm acesso a extensa bibliografia, muitas vezes não-acadêmica ou até mesmo de baixa qualidade historiográfica, relacionada a alguns dos assuntos que despertam maior interesse, como mitologia, religião e monarquia. Os estudos da Civilização Egípcia têm crescido, mas, apesar disso, temas como literatura ou economia, dentre outros, continuam sendo deixados um pouco de lado ou recebem menor atenção, tanto por não despertarem interesse de mercado como por serem menos estudados, contando essas áreas, consequentemente, com menos especialistas. O estudo dos períodos e civilizações da Antiguidade é de extraordinária importância, por serem eles fundamentais para a compreensão do desenvolvimento das sociedades e dos indivíduos em si mesmos, além de permitirem a percepção das diversidades culturais e humanas que permeiam todos os cantos do planeta. O período histórico do Reino Novo (c. 1550-1069 a.C.)1 egípcio foi eleito como um dos focos deste trabalho devido a dois fatores principais: a produção bibliográfica sobre o tema específico da pesquisa ainda ser escassa no Brasil; e por tratar-se de um período consideravelmente bem documentado da história do Egito, o que facilita o desenvolvimento do trabalho. Esta demarcação temporal, entretanto, 1 Cronologia de autoria do Prof. Ciro Flamarion S. Cardoso. 14 não impossibilita que, caso necessário, seja feita alusão a períodos anteriores ou posteriores à escrita da fonte aqui estudada. Somando-se a tudo isso, deve ser levado em conta o fato de que as análises histórico-literárias específicas de textos egípcios, aplicando-lhes técnicas particulares geradas pelos estudos literários, são relativamente recentes, tendo sido iniciadas apenas em 1982, com John Baines, além de estarem verdadeiramente pouco trabalhadas. Apesar de a literatura egípcia ser um tema pouco frequentado pelos egiptólogos brasileiros, fora do país tal estudo já originou inúmeras discussões e interpretações variadas acerca dos diferentes gêneros literários produzidos no Egito Antigo. No caso específico dos textos narrativos egípcios, alguns importantes estudiosos desenvolveram pesquisas bastante substanciais a esse respeito. As fontes utilizadas para a elaboração desta pesquisa, por exemplo, encontram-se disponíveis em traduções de qualidade para o português, o inglês, o francês, o espanhol, entre outras línguas, além de existir bibliografia relativamente diversificada e de fácil acesso sobre o assunto em vários idiomas. Mediante uma análise histórico-literária do Conto de Apepi e Sequenenra, foram traçados alguns objetivos específicos e hipóteses a serem trabalhados neste trabalho e que serão apresentados a seguir. OBJETIVOS 1. Esclarecer as características do contexto histórico e da mentalidade da época que porventura possam ter influenciado o maior desenvolvimento da forma de escrita narrativa no antigo Egito. 2. Entender as características específicas e analisar a estrutura desse tipo de escrita literária no Antigo Egito. 3. Levar em consideração o fato de que o documento escolhido como fonte central se refere a personagens reais, que fizeram parte de um contexto histórico, apesar de se tratar de um texto literário, visando traçar um paralelo entre ficção e realidade. 15 4. Analisar a organização política egípcia entre o final do Segundo Período Intermediário (c. 1650-1550 a.C.) e o início do Reino Novo (c. 1550-1069 a.C.), para compreender o contexto histórico em que a Contenda de Apepi e Sequenenra teria sido baseada. 5. Diferenciar os conceitos de politeísmo, monoteísmo, monolatria, henoteísmo, sincretismo e conjunção de divindades, especialmente no que se refere ao contexto histórico da religião egípcia. 6. Relacionar a supremacia do culto monolátrico prestado a deuses específicos, neste caso Seth e Amon-Rá, respectivamente em Avaris e em Tebas, fato bem comprovado por diversas fontes. HIPÓTESES 1. Acreditando na existência de uma verdadeira literatura no antigo Egito, isto é, uma socioliteratura, e levando em consideração as características restritas da possibilidade de ler e escrever dessa civilização no período aqui trabalhado, seria possível elucidar quem eram os responsáveis pela produção textual de tipo literário e a qual público ela se destinava − no caso, tanto produtores quanto consumidores eram membros de uma pequena elite letrada. 2. Nos primórdios do desenvolvimento da socioliteratura egípcia, por volta de 2000 a.C, a intertextualidade estava fortemente presente, no sentido de que os gêneros literários não apresentavam limites precisos entre si e as expressões e fórmulas prontas passavam de umas para as outras frequentemente, o que demonstraria um público tanto produtor como consumidor bastante restrito. Em oposição a isso, no Reino Novo os gêneros eram bem mais diferenciados entre si textualmente, em linguagem e de outros 16 modos, o que demonstraria algum tipo de ampliação do público receptor, já que os escribas permaneceram como minoria considerável da população. 3. O texto ilustra a coexistência de um culto monolátrico, de parte dos governantes, e de um culto politeísta, pelo restante da população. 4. Apesar da coexistência de dois governantes no território egípcio, e de ambos serem tratados como soberanos, através da análise do conto é possível perceber certa hesitação quanto à maneira de se referir a Sequenenra, que na maioria das vezes aparece, por exemplo, sendo chamado de “Príncipe da Cidade do Sul”, enquanto Apepi é chamado de “rei” em quase toda a extensão da contenda, o que demonstraria uma diferenciação de tratamento referente a Apepi e Sequenenra. Além da introdução e da conclusão, a dissertação está dividida em três capítulos: O capítulo I, intitulado Contexto Histórico e Contexto Literário, é dividido em duas partes: a primeira, referente ao Contexto Histórico, subdividida entre o momento da dominação hicsa e o consequente Segundo Período Intermediário, e a expulsão dos hicsos do território egípcio, dando início ao Reino Novo; a segunda, falando a respeito do contexto literário em que o nosso texto foi produzido, levandose em consideração o fato de apesar do conto retratar elementos históricos do Segundo Período Intermediário (c. 1650-1550 a.C.), ele ter sido escrito (ou copiado) durante a XIXª dinastia, dentro do período de reinado do faraó Merenptah (c. 12131203 a.C.), no Reino Novo. O capítulo II, A Contenda de Apepi e Sequenenra, como o próprio nome dá a entender, trata especificamente do conto, começando pela apresentação e descrição do texto e, em seguida, destacando-se os principais elementos que nele aparecem: (1) a questão política, referente à existência de dois governos paralelos de um soberano hicso e outro egípcio; (2) e a questão religiosa, especialmente no que diz respeito ao caráter monolátrico de culto prestado pelos dois faraós, Apepi e Sequenenra, reinantes na época, respectivamente a Sutekh e a Amon-Rá. Algumas 17 conceitualizações também serão necessárias, especialmente no que diz respeito às diferentes formas de cultos religiosos. O capítulo III, Analisando a Contenda de Apepi e Sequenenra, teve como objetivo examinar teoricamente, e através da aplicação de métodos de análise histórica e literária – que serão apresentados no próprio capítulo –, a fonte que é o objeto de estudo desta pesquisa, a fim de se buscar, na medida do possível, a corroboração das hipóteses apresentadas anteriormente. Por fim, após a análise de todos os elementos que serão desenvolvidos ao longo desta dissertação, na conclusão serão apresentados os resultados alcançados com a pesquisa durante o tempo de pesquisa do Mestrado. 18 CAPÍTULO I Contexto Histórico e Contexto Literário 1.1. O Contexto Histórico 1.1.1. A Dominação Hicsa e o Segundo Período Intermediário O Segundo Período Intermediário (c. 1650-1550 a.C.) foi marcado pela ruptura e perturbação da integridade territorial egípcia, sendo caracterizado pela presença de estrangeiros de origem asiática, denominados hicsos, no Egito, o que representaria uma das mais graves ocupações territoriais sofrida pela civilização egípcia na Antiguidade. De modo geral, ao falarmos dos “Períodos Intermediários” da história egípcia, estamos nos referindo a períodos de transição, em que normalmente ocorria a ruptura do governo estabelecido e a dissolução do poder centralizado por meio do aparecimento de uma série de governantes regionais que pouco se destacaram. T. G. H. James resume isso muito bem ao conceitualizá-los dizendo que “Eram períodos de fraqueza, quando a autoridade central não podia ser exercida de forma eficiente. Algumas vezes, o país do Egito foi facilmente dividido em pequenas unidades quase independentes. Depois, a casa governante passava a exercer apenas um resquício de autoridade, sendo incapaz de realizar grandes obras. Na verdade, foram períodos sem distinção, e, como tal, são lembrados por poucos registros de alguma importância”2. Antes de falarmos especificamente dos acontecimentos do Segundo Período Intermediário, faz-se necessário observarmos alguns de seus antecedentes. A partir de JAMES, T. G. H. “The Expulsion of the Hyksos” in The Archaeology of Ancient Egypt. London/Sydney/Toronto: The Bodley Head, 1972. p. 64. “They were periods of weakness, when central authority could not be exerted efficiently. At such times the country of Egypt easily split up into small, almost independent units. Then the ruling house could display only a shadowy authority, and could never undertake great works. In fact they were periods without distinction, and as such they are memorialised by few records of any consequence.” 2 19 meados do Reino Médio (c. 2055-1650 a.C.), especialmente da XIIIª dinastia em diante, o Egito enfrentou uma forte crise dinástica acarretada por contínuos problemas de sucessão governamental e, possivelmente, tendo como consequência corregências que acabaram dividindo o controle sobre o Alto e o Baixo Egito, o que, por conseguinte, enfraqueceu o poder sobre as Duas Terras. Apesar de existir um número relativamente pequeno de informações confiáveis e detalhadas acerca dos governos da XIIIª e da XIVª dinastias, muitos pesquisadores afirmam terem coexistido nesta fase paralelamente diferentes dinastias, demonstrando uma divisão do poder egípcio desde aquela época, o que mais tarde viria a incidir ainda mais fortemente sobre aquela civilização. Nesse contexto de enfraquecimento dinástico é que teria ocorrido a dominação hicsa no Egito, fato este utilizado como marco do Segundo Período Intermediário. Nesta fase governaram os soberanos da XVª, XVIª e XVIIª dinastias, e cabe salientar que algumas dessas casas reais coexistiram, além do fato de que ao mesmo tempo o Egito estava em parte dominado pelo povo estrangeiro, enquanto outra parte permanecia sob o domínio egípcio, situação esta que aprofundaremos mais adiante. Os soberanos hicsos dominadores das terras do Egito seriam, então, os formadores da XVª dinastia. O Papiro Real de Turim3 se refere a esses reis imigrantes por seus títulos reais egípcios, mas utilizando, também, a expressão “heqa khasut”, em egípcio HqA xAswt.. Desse termo, que poderia ser traduzido para algo como “governante dos países estrangeiros”, derivou-se o termo grego “hyksos”, de tradição posterior. Entretanto, tal terminologia já era utilizada pelos egípcios muito antes da dominação daqueles que ficaram conhecidos como hicsos, aparecendo em textos desde o Reino Antigo, para denominar os chefes das tribos da Ásia Menor, sem determinar exatamente o local de origem das populações aludidas. Qual seria então a procedência do povo hicso? De acordo com Steindorff e Seele, “Embora seja possível que eles não formassem um povo homogêneo, o elemento preponderante entre eles era sem dúvida semita”.4 O debate acerca de como os hicsos estenderam sua autoridade sobre o território egípcio é bastante acalorado na Egiptologia. Para o historiador egípcio de época O Papiro de Turim encontra-se no Museu Egípcio de Turim, ao qual deve o seu nome, e trata-se de um texto provavelmente da época de Ramsés II (c. 1279-1213 a.C.) que menciona os nomes dos faraós que reinaram no Antigo Egito. 4 STEINDORFF, George & SEELE, Keith C. “The Hyksos” in When Egypt Ruled The East. Chicago & London: The University of Chicago Press. p. 24. “While it is possible that they were not a homogeneous people, the preponderant element among them was doubtless Semitic.” 3 20 grega, Manethon, que viveu durante o Período Ptolomaico, a conquista hicsa teria sim se dado através de uma invasão. Esta alegação seria ainda mais antiga, remontando ao período de governo de Kamés, em suas estelas produzidas em honra à vitória contra os hicsos, textos em que se referia à libertação do Egito das mãos dos asiáticos que haviam causado destruição nas terras egípcias. E, ainda, um pouco mais à frente, em declarações da rainha Hatshepsut, nas quais ela afirmava terem os asiáticos destruído aquilo que havia sido construído pelos egípcios, fazendo referência a algum tipo de invasão ou dominação nada pacífica feita por aquele povo. Já Donald Redford dispensa a hipótese da invasão, afirmando que os hicsos teriam penetrado no Egito de maneira progressiva, estabelecendo-se aos poucos no Delta até que, aproveitando-se de um momento de crise entre os egípcios, conseguiram tomar o poder, como podemos observar através do trecho por ele escrito apresentado a seguir: “Os papiros do Brooklyn Museum, (...), demonstram claramente a presença no Egito, durante as XIIª e XIIIª dinastias, de uma considerável população asiática de condição servil, provavelmente introduzida como resultado de guerras estrangeiras. Embora não haja nada que sugira que essa população fosse um pouco maior no Delta Oriental do que em outros lugares, não seria irracional supor que, com o enfraquecimento gradual da autoridade real, as defesas do Delta fossem se enfraquecendo, e grupos de transumantes achassem fácil atravessar a fronteira e se estabelecer no Baixo Egito. Embora o próximo passo no argumento seja em grande parte inferencial, qualquer um pode ser levado a acreditar que com o tempo a população asiática do Delta Oriental cresceu a ponto de ultrapassar em número os nativos do Egito. Acreditando-se nisso, o postulado de uma invasão tornar-se-ia desnecessário: a tomada do poder pelos hicsos revelar-se-ia como uma tomada pacífica do interior por um elemento racial que já representava a maioria.”5 REDFORD, Donald B. “The Hyksos in Egypt” in Egypt, Canaan, and Israel in Ancient Times. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1992. p. 101. “The Brooklyn Museum Papyrus, (…), demonstrate clearly the presence in Egypt during the 12th and 13th Dynasties of a sizable Asiatic population of servile status, presumably brought back as the result of foreign wars. Although there is nothing to suggest that this population was any larger in the eastern Delta than elsewhere, it is not unreasonable to suppose that with the gradual weakening of royal authority, the Delta defences were allowed to lapse, and groups of transhumants found it easy to cross the frontier and settle in Lower Egypt. Although the next step in the argument is largely inferential, one can be led to believe that in time the Asiatic population of the eastern Delta grew to exceed in number the native Egyptian stock. Having persuaded oneself of this, the postulate of an invasion becomes unnecessary: the Hyksos assumption of power reveals itself as a peaceful takeover from within by a racial element already in the majority”. 5 21 Para Claire Lalouette, “É provável que a instalação tenha durado um quarto de século, até o início do século XVII a.C. Os hicsos passaram então a constituir um Estado, controlando o Delta; sob as ordens de seu líder Salitis, eles empreendem então a conquista do Egito. A resistência que lhes foi oposta não parece ter sido muito forte; o Egito, como vimos, estava dividido em dinastias locais, portanto nenhuma estratégia global poderia ser organizada. Além disso, os hicsos parecem estar dispostos naquele momento de uma arma de guerra nova e eficaz: a carruagem, puxada por cavalos. A superioridade tática dos invasores veio facilmente a superar a resistência esporádica”6. Como dito anteriormente, esse debate referente à maneira como os hicsos teriam adentrado e dominado o Egito é bastante controvertido. Por não ser este o tema central desta pesquisa, não entraremos nesse mérito e retornaremos nossa atenção para a situação em que o Egito se viu imerso após a dominação hicsa. Independente de qual tenha sido a maneira utilizada pelos hicsos para dominarem o Egito, podemos dizer que a submissão oficial egípcia ao povo asiático foi marcada pela coroação do primeiro soberano hicso, Salitis, em Mênfis. No entanto, o centro de poder do novo governo foi estabelecido na cidade de Avaris, por ser esta estrategicamente melhor situada, entre o Egito e o istmo de Suez. Apesar da nova situação, pouca coisa mudou na administração do país e a tomada do poder pelos estrangeiros quase não teria influído na vida do povo, que já adaptado a pagar tributos aos faraós e aos templos pouco sofreu com a mudança do governo. De acordo com Gardiner, “uma parte considerável da população se resignou à ocupação asiática e tinha achado possível conviver com os invasores em condições mutuamente vantajosas”.7 LALOUETTE, Claire. “Des Étrangers au Royaume D’Égypte” in Thébes ou La Naissance d’un Empire. Paris: Fayard, 1995. p. 99. “L'installation a vraisemblablement duré pendant un quart de siècle, jusqu'au début du XVIIᵉ siècle av. J.-C. Les Hyksos sont alors constitués en État, contrôlant le Delta ; sous les ordres de leur chef Salitis, ils entreprennent alors la conquête de l’Égypte. La résistance qui leur fut opposée ne semble pas avoir été trés forte ; l’Égypte, nous l’avons vu, étant divisée en dynasties locales, aucune stratégie d’ensemble ne pouvait être organisée. De plus, les Hyksos semblent avoir disposé à ce moment d’une arme de guerre nouvelle et efficace : le char, tiré par des chevaux. La supériorité tactique des envahisseurs vint facilement à bout des résistances sporadiques.” 7 GARDINER, Sir Alan. “From Collapse to Recovery” in Egypt of The Pharaohs. London/Oxford/New York: Oxford University Press, 1979. p. 171. “a considerable part of the population had resigned themselves to the Asiatic occupation and had found it possible to treat with the invaders on mutually advantageous terms.” 6 22 Embora essa população estrangeira tenha conservado boa parte de sua identidade cultural − típica, aliás, das estruturas urbanas da Palestina, o que se opõe à visão tradicional a respeito que os denominava “reis pastores”−, alguns governantes hicsos da XVª dinastia mostravam-se bastante egipcianizados, tendo procurado absorver os modos e costumes egípcios, o que é evidenciado por alguns comportamentos por eles adotados: Logo que se estabeleceram, passaram a usurpar parte dos monumentos que encontraram, gravando neles os seus nomes, prática essa comumente adotada também pelos faraós egípcios8; além disso, formaram seus nomes reais seguindo a sistematização egípcia. Ao mesmo tempo em que todas essas alterações eram feitas na região do Delta do Nilo, o Alto Egito permanecia sob o controle e a administração dos príncipes tebanos, descendentes da XIIIª dinastia egípcia, que haviam sido encurralados em direção ao sul. Surpreendentemente, toda uma ascendência desses soberanos, que permaneceram ligados através de laços de parentesco ou matrimoniais às famílias dirigentes da região, conseguiu manter o poder em Tebas, apesar de serem obrigados a pagar tributos aos invasores. Eles formaram a XVIª dinastia, contemporânea com a dinastia hicsa anterior, e, posteriormente, a XVIIª dinastia, que mais tarde viria a ser a grande responsável pela expulsão dos invasores e a reunificação do Egito, pondo fim ao Segundo Período Intermediário (c. 1650-1550 a.C.) e inaugurando o novo período histórico: o Reino Novo (c. 1550-1069 a.C.). 1.1.2. A Expulsão dos Hicsos e o Reino Novo Antes de tudo cabe ressaltar que boa parte das informações acerca dos acontecimentos que levaram à expulsão dos hicsos do território egípcio foram estudadas por diversos egiptólogos, como Sir Alan Gardiner9, por exemplo, e são aqui apresentadas Quando essa prática ocorria entre faraós egípcios nem sempre era vista como algo desonesto, pois a reapropriação de monumentos era bastante aceita, tendo em vista que o cargo de faraó funcionaria como uma espécie de instituição perpétua, independente de quem esteja ocupando o cargo no momento, portanto, todos teriam direito sobre aquelas obras. 9 GARDINER, A. H., "The Expulsion of the Hyksos," in: JEA, vol. 5, p. 36-56 (1918). 8 23 a partir das informações contidas nas Estelas de Kamés10 e no Tablete de Carnarvon Nº0111. Após mais ou menos um século de domínio hicso, a XVIIª dinastia tebana suscitou um movimento de revolta contra os reis de Avaris que, embora bem adaptados, não passavam de estrangeiros. Segundo Lalouette, a “luta sem dúvida começou com Sequenenra Tao, enquanto reinava em Avaris um rei chamado Apepi, que com o poder real controlava então todo o Delta, mas não se estendeu muito além do Médio Egito”.12 Mesmo que tenha sido Sequenenra o pioneiro a iniciar a luta pelo reestabelecimento do controle sobre as Duas Terras, ao que tudo indica, especialmente pela observação dos ferimentos encontrados na múmia do faraó egípcio, ele teria morrido em batalha, possivelmente contra os próprios hicsos. Foi, então, o filho mais velho de Sequenenra, e seu sucessor, Kamés, um dos principais responsáveis pela expulsão dos hicsos do Egito. Kamés teria dado continuidade ao processo de expulsão com uma primeira expedição até a cidade de Neferusy, ao norte de Hermópolis, no Delta, saindo vitorioso e fazendo com que os asiáticos começassem a recuar. Com esse sucesso tebano, Apepi viu-se obrigado a fugir para sua capital, Avaris. Entretanto, existem elementos (textuais e imagéticos) que indicam ser possível que antes disso Kamés tenha feito uma campanha militar ao Sul, a fim de garantir a segurança na fronteira meridional antes de atacar o Norte. Sabemos que a ele se deve a primeira indicação de um “filho real de Kush” como governante do sul. Apepi, então, buscou uma aliança com o rei de Kush, com o objetivo de manter os egípcios de Tebas acossados em duas frentes. Mas ao enviar uma carta solicitando o auxílio do rei kushita, a mensagem hicsa foi interceptada por Kamés antes que chegasse ao seu destino, diminuindo ainda mais as chances de uma possível reviravolta hicsa. A campanha teria sido interrompida por algum tempo, devido à inundação do rio Nilo, sendo retomada logo a seguir. Estelas encontradas no Templo de Karnak, elaboradas durante o governo de Kamés para comemorar uma campanha vitoriosa contra os hicsos. Os fragmentos da Primeira Estela de Kamés foram encontrados no ano de 1935 e, atualmente, encontram-se no Museu do Cairo (Cairo, Egyptian Museum, Temp. no. II.I.35.I); A Segunda Estela de Kamés foi localizada no ano de 1954 e, atualmente, encontra-se no Museu de Luxor (Luxor Museum J. 43). 11 Um dos tabletes que foram localizados no início do século XX, em uma tumba da XVIIª Dinastia, em Deir el-Bahari, numa escavação promovida pelo Lorde George Carnarvon. Hoje se encontra no Museu Egípcio do Cairo (JE 41790). 12 LALOUETTE, op. cit. p. 113. “La lutte a sans doute commencé avec Seqenenrê Taâ, alors que régnait à Avaris un roi Apopi, dont le pouvoir réel alors, qui controlâit tout le Delta, ne s’étendait plus guère au-delà de la Moyenne Égypte”. 10 24 Embora Kamés tenha dado o pontapé inicial e obtido inúmeros avanços no que se refere à expulsão e ao fim do domínio estrangeiro sobre o Egito, foi Ahmés, o sucessor e irmão mais novo de Kamés, que empreendeu com sucesso uma série de campanhas militares que erradicaram permanentemente a presença dos hicsos no país, acabando de vez com o momento de crise sofrido durante o Segundo Período Intermediário. Foi, portanto, Ahmés, quem entrou para a história como o reunificador do Egito e fundador da XVIIIª Dinastia, inaugurando, assim, o Reino Novo (c. 1550-1069 a.C.). 25 Fig.1 – Segunda Estela de Kamosis (Kamés), comemorando sua campanha vitoriosa contra os Hicsos, Museu de Luxor (Luxor Museum J. 43) No final das contas, a não ser tecnologicamente, o episódio hicso acarretou poucas mudanças na vida dos egípcios. As principais dessas modificações técnicas foram melhoramentos na preparação do bronze, a introdução do cavalo e do carro puxado por cavalos, bem como do arco composto e outros tipos de equipamento militar, 26 que muito viriam a ajudar o Egito em suas campanhas militares subsequentes. As influências estrangeiras recebidas durante o Segundo Período Intermediário permitiram uma maior abertura do Egito, com a consequente transformação na forma de pensar daquele povo, promovendo um refinamento dos costumes e permitindo aos egípcios uma percepção de si mesmos como indivíduos. Foi o momento ideal para a afirmação de uma nova maneira de pensar que, embora já estivesse há mais tempo arraigada na população, só agora se tornava oficial. 27 1.2. O Contexto Literário 1.2.1. A Literatura Egípcia Existem sérias dificuldades para se apreciar o valor literário das obras egípcias, tanto em sua forma, como em seu conteúdo. Primeiramente, a escassez de material é um enorme problema. Os poucos textos conservados encontram-se em materiais como pedra, papiro e argila, alguns deles tão frágeis que nos fazem pensar como sobreviveram há tanto tempo e quantos deles devem ter sido perdidos pelo caminho (aliás, uma indicação a esse respeito é a existência de bom número de textos literários muito fragmentários em sua conservação). Uma segunda dificuldade é sua linguagem, que muitas vezes varia consideravelmente de texto para texto, mesmo entre aqueles hoje considerados pertencentes a um mesmo gênero literário e/ou escritos mais ou menos na mesma época. Às vezes os textos aparecem, ainda, lacunares, faltando palavras-chaves no meio das frases, ou até mesmo inconclusos. Todos estes problemas estão presentes na Contenda de Apepi e Sequenenra, fonte base desta dissertação. Se fossem considerados somente os textos egípcios de que se tem conhecimento, haveria uma representação distorcida da literatura egípcia antiga, devido às inúmeras lacunas existentes, portanto é necessário ter em mente que muito material escrito se perdeu. A natureza frágil do papiro, que era o principal material utilizado na inscrição de textos literários, é a maior causadora da enorme quantidade de brechas existentes nesse campo de estudo. A grande maioria dos textos encontrados deve sua conservação à natureza árida do deserto. Muitos destes foram descobertos em tumbas, o que, consequentemente, aponta para o fato de a maioria deles ser de natureza funerária. Apesar deste ambiente propício à preservação apresentar um lado positivo, possui, ainda, outro negativo, pois não era muito comum os egípcios depositarem em seus sepulcros textos seculares, ao menos que possuíssem um motivo particular que os levassem a isso, por não considerá-los necessários para sua outra vida. Por isso mesmo, foram pouquíssimos os papiros literários encontrados nesses lugares. Outro problema enfrentado nesse caso, diz respeito aos frequentes roubos de tumbas, que 28 acabaram acarretando a perda de muitas fontes históricas egípcias importantes, inclusive textos escritos em papiros. O ambiente característico dos textos literários egípcios eram as cidades, mas estas não possuíam o clima seco tão favorável quanto o do deserto e, em decorrência disso, não proporcionavam as mesmas condições de segurança e preservação para os papiros. Entretanto, apesar de todas as adversidades, existem sim diversos registros de papiros localizados em cidades egípcias, ainda que em menor quantidade, é claro, do que no deserto. Devido a esses fatores, é muito provável que a maior parte dos papiros literários tenha perecido. Todavia, é possível que ainda haja muito a ser descoberto. Pela incidência dessa lastimável dificuldade que é imposta à Egiptologia, deve-se levar em consideração o fato de determinados tipos de textos terem sido descobertos em maior quantidade, não apenas devido ao ambiente em que foram localizados, mas significando, ainda, que estes foram mais largamente copiados do que outros. É o caso da literatura das escolas, isso é, dos textos que eram comumente utilizados no treinamento dos escribas, sendo copiados e recopiados por estes homens durante todo o seu processo de aprendizagem. Alguns destes chegando até mesmo a sobreviver em centenas como, por exemplo, o manual Kemyt, de aproximadamente 2000 a.C., do qual foram encontradas cerca de 400 cópias parciais, apenas para citar um dentre tantos documentos que poderiam ser aqui mencionados. Outros escritos, apesar de não existirem atualmente em tamanha quantidade de cópias, parciais ou totais, também foram consideravelmente representados, possivelmente por serem textos apreciados pelos homens mais cultos da sociedade egípcia e, por isso mesmo, copiados em qualidade melhor do que as versões escolares, o que favoreceu a sua conservação. Sem sombra de dúvidas as obras mais populares entre os egípcios eram mais amplamente transcritas, o que leva a crer que as chances de terem se preservado e de serem encontradas é muito maior do que a daquelas que não eram tão apreciadas. Obviamente é necessário ponderar a respeito de que existe a chance de acidentes, sendo, portanto, possível que um determinado texto bastante popular, mesmo se copiado às centenas, possa ter se perdido por completo, enquanto outro existente num único documento, num único exemplar, seja achado. 29 Definitivamente, a reconstrução da história da literatura egípcia não é uma tarefa fácil. O autor egípcio mais antigo de que se tem conhecimento é o afamado Imhotep, conselheiro do faraó Djoser, da IIIª Dinastia. Seu prestígio era tamanho que ele chegou a ser deificado no Período Tardio (c. 672-342 a.C.). Embora tão importante, nada nos resta de sua obra didática. Para Georges Posener, “É muito provável que sobrevivam algumas se suas máximas, reproduzidas e comentadas por escritores que vieram mais tarde, ou citadas em biografias, mas não podem ser identificadas, pois tinham os egípcios o hábito desventurado de não indicar suas fontes, nem recorriam às nossas aspas para indicar citações. Perdem-se, assim, as máximas de Imhotep, máximas que ainda eram correntes pelo menos meio milênio depois de sua morte”13. A literatura do Reino Antigo (c. 2686-2025 a.C.) egípcio parece ter sido marcada basicamente pelo gênero didático, cujos escritores pertenciam ao círculo imediato dos faraós; mas dela não dispomos exemplares. A partir do Primeiro Período Intermediário (c. 2160-2055 a.C.), essa situação se altera. Com a crise do Estado menfita houve miséria, incertezas e agitação. O equilíbrio antes vigente foi substituído por conflitos e insurreições que acabaram por se refletir na literatura. Os gêneros literários se multiplicaram. Surgiram a discussão filosófica em forma de diálogo, o testamento monárquico, a profecia, a diatribe política e social, entre muitos outros. Existem poucas cópias sobreviventes dos textos do Primeiro Período Intermediário, mas pelo menos dispomos de alguns. E os períodos que se seguiram não foram marcados, de imediato, pelo surgimento e originalidade de gêneros na criação literária, embora sim por uma disponibilidade maior de textos que possam ser estudados. O novo apogeu literário teria ocorrido posteriormente, somente durante o Reino Novo. Note-se que, na verdade, não há textos literários que garantidamente pertençam ao Reino Antigo. Alguns são atribuídos a personagens importantes dessa época que de fato existiram, mas a linguagem deles corresponde à do Reino Médio (c. 2055-1650 a.C.). Sabe-se que num país altamente conservador atribuir um POSENER, Georges. “Literatura” in: HARRIS, J. R. (Org.), tradução de Henrique de Araújo Mesquita. O Legado do Egito. Rio de Janeiro: Imago Ed.,1993, p. 236-237. 13 30 escrito a um passado ilustre o valorizava, mesmo sendo falsa tal atribuição, fato esse que acaba nos gerando um grande problema de periodização. Após um auge literário no Reino Novo (c. 1550-1069 a.C.), de que trataremos depois, mesmo com a perda da independência sob os sucessivos domínios de persas, gregos e romanos, não houve, entretanto, um esgotamento do gênio criador literário no Egito. O país pode ter se submetido ao domínio de outras civilizações, mas em momento algum seus escritos perderam seu caráter próprio. A tardia literatura demótica, por exemplo, nos demonstra que a imaginação egípcia permanecia viva e que sua tradição era mantida. Apesar das mudanças enfrentadas, os antigos gêneros ainda conservavam seu valor. A arte egípcia acompanhou o desenvolvimento simbólico da religião, permanecendo a primeira sempre subserviente à segunda. No entanto, afirma Posener, “a literatura egípcia foi (...) essencialmente secular em sua raison d’être”14, isto é, a literatura existia independentemente dos demais componentes artísticos, tendo sido cultivada por si mesma, pelo simples fato de proporcionar prazer àqueles que a ela tinham acesso. Até mesmo os textos religiosos eram encarados pelos egípcios como verdadeiras obras de arte, pois eram perfeitamente capazes de reconhecer sua incontestável qualidade poética e seu valor intrínseco. Segundo Ciro Cardoso, que se baseia em John Baines, dois processos, iniciados no Primeiro Período Intermediário (c. 2134-2040 a.C.), foram fundamentais para o surgimento de uma verdadeira literatura egípcia: a complexificação da língua escrita, fazendo com que fosse possível criar textos mais longos; e a desconcentração social da escrita e dos textos para além dos círculos estritos do poder estatal. Desse modo, os textos egípcios deixaram de ter apenas finalidades administrativas e/ou funerárias, passando, também, a proporcionar uma forma de lazer para seus leitores. O Reino Novo (c. 1550-1069 a.C.), sobretudo durante o período Raméssida (XIXª-XXª dinastias), foi uma das épocas de maiores transformações nos diversos campos da sociedade egípcia, pois nele ocorreram inúmeras modificações políticas, econômicas, sociais, culturais, etc. A maioria dos egiptólogos concorda que nesse período ocorreu uma mudança extremamente radical na forma de se pensar o mundo e de se pensar o indivíduo por ele mesmo. Essa mutação da mentalidade 14 Ibidem. p. 261. 31 coletiva aconteceu especialmente após o domínio dos hicsos, que teria aberto as fronteiras do país às influências estrangeiras, o que, juntamente com uma fase de prosperidade acarretada por campanhas militares vitoriosas e intensa atividade comercial com o exterior, foram alguns dos fatores que suscitaram um refinamento dos costumes, permitindo aos egípcios uma percepção de si mesmos como indivíduos. Este teria sido, então, o momento da afirmação de uma nova forma de pensar, presente há algum tempo na população e que finalmente atingia o sistema canônico, oficializando-se. Emanuel Araújo, na introdução de seu livro Escrito para a eternidade: a literatura no Egito faraônico, fala do consenso de que a literatura egípcia não pode ser exclusivamente considerada de acordo com os parâmetros utilizados para a análise da literatura ocidental moderna, pois ela possui certas especificidades que devem ser estudadas por meio da aplicação de critérios hermenêuticos específicos utilizados pela teoria literária15. Segundo o autor, a análise do discurso literário egípcio deve partir de três dimensões textuais: a ficcionalidade, a intertextualidade e a recepção. Tendo em vista que o Conto de Apepi e Sequenenra, embora seja de caráter ficcional, apresente elementos historicamente reais, essa discussão, inclusive, demonstra-se imprescindível. Antonio Loprieno define “ficcionalidade” como “uma categoria textual pela qual um mútuo acordo implícito é criado entre autor a leitor para que o mundo apresentado no texto não precise coincidir com o mundo real e para que não se apliquem sanções em caso de discrepância. Essa concordância tácita entre autor a leitor é gerada por critérios formais e estilísticos, por uma ‘estrutura’ e uma ‘textura’.”16 Todavia, o caráter ficcional não se resumiria apenas ao critério da imaginação ou da invenção, mas seria produto de um estranhamento por parte do leitor, tendo em vista que utilizar-se-ia de uma linguagem distinta da do cotidiano, o que é especialmente observado através da aplicação em grande escala de figuras de linguagem, muito comuns nos escritos egípcios. ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eternidade: A literatura no Egito faraônico. Ed UnB, SP, 2000, p. 38-39. 16 LOPRIENO, Antonio. Ancient Egyptian Literature: History and Forms. Leiden, New York, Cologne: E.J. Brill, 1996, p. 43. 15 32 Já a “intertextualidade” estaria presente em todo texto que expusesse uma metalinguagem particular, já que sempre remetem em suas estruturas e em sua expressão a muitos outros. Teria como princípio, portanto, a ideia de que “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de outro texto”17, podendo ser utilizados diversos tipos de discurso, literários ou não, em um contexto literário, como fontes históricas, textos religiosos, cartas, dentre outros. E, por fim, a última dimensão, a “recepção”. Acerca disso, Araújo levanta alguns interessantes questionamentos, respondendo-os logo em seguida: “No caso do Egito, começamos com um problema: quem e quantos eram esses leitores? A resposta varia: julga-se que o conhecimento da escrita (e portanto da leitura) se circunscreveria a uma elite culta que no Reino Antigo não passaria de 3 a 5% da população, ou, ao contrário, que a cifra era muito mais alta e que havia um considerável número de pessoas capaz de ler e escrever. Não há dúvida, com efeito, de que esse tipo de conhecimento, produzido e reproduzido em especial nas casas da vida, circulava preferencialmente na elite (escribas, sacerdotes, cortesãos, pessoas abastadas) que vivia na Corte, mas também nos centros provinciais, porém há questões difíceis de responder por falta de fontes. (...) Tampouco jamais saberemos quanta gente se beneficiava da leitura em voz alta – presumindo-se que tal prática podia ser corrente em certos locais – ou da narrativa por contadores de histórias, se é que eles existiram, em feiras e outros ambientes públicos, ou ainda quão grande ou diversificado era o público espectador das encenações dramáticas de qualquer natureza: dramas rituais públicos ou limitados ao sacerdócio nos templos, ou mesmo dramas ‘profanos’ sem caráter ritual.”18. No conjunto, predominam na atualidade as apreciações pessimistas no relativo à proporção dos letrados na população egípcia antiga, e isso em todos os períodos. Admitindo alguma flutuação no tempo, muitos autores defendem que uma porcentagem ínfima dos antigos egípcios soubesse ler e escrever. No que se refere ao Antigo Egito, o tema da recepção é um assunto bastante discutível, devido a todos os fatores explicitados acima, como a porcentagem de população leitora, por exemplo. Entretanto, e apesar de tudo, a existência de um público leitor, e consequentemente da recepção, fica clara quando se observa a enorme quantidade de textos egípcios antigos encontrados, que foram 17 18 BAINES, John. “Interpreting Sinuhe”. JEA, 68. London, 1982, p. 34-35. ARAÚJO, op. cit. p. 40-41. 33 copiados e recopiados durante séculos, não apenas por escribas durante seu treinamento, como também inúmeras reproduções feitas para serem destinadas ao consumo fora do ambiente escolar. Se não houvesse um público-alvo, certamente esses textos não seriam reproduzidos em tamanha escala. Outra questão que advém da recepção referente ao contexto egípcio, diz respeito ao caráter dos textos que podem ou não ser considerados literatura em seu pleno sentido, como no caso dos escritos históricos e dos autobiográficos. Hoje, o mais comum é considerá-los literários, mas é preciso ressaltar que essa é uma escolha nossa, atual, e que não necessariamente tenha a ver com o objetivo pelo qual foram produzidos pelos egípcios, há milhares de anos atrás. Nessa conjuntura, Emanuel Araújo destaca a importância da religião, sempre presente em todos os setores daquela sociedade: “Acontecia, no entanto, que a religião permeava todos os níveis da cultura egípcia, e não é de admirar que várias de suas manifestações – inclusive com expressão específica – se encontrassem presentes em textos literários, ou, ao contrário, formas literárias fossem apropriadas para contextos não literários”19. Os textos egípcios que às vezes são chamados de “históricos” − inscrições régias acerca de batalhas, por exemplo − apresentam com frequência elementos nitidamente literários, além de fórmulas que demonstram terem sido eles produzidos com o objetivo de serem lidos e/ou ouvidos no momento em que foram redigidos, bem como pela posteridade. Contudo, existe uma forte contradição quanto a esses desígnios, tendo em vista que a grande maioria desses escritos encontravase em locais de difícil acesso para a maioria da população, como as paredes templárias, onde o público em geral não poderia adentrar. Quanto a isso, Araújo faz referência à Erik Hornung, citando que “as inscrições e imagens históricas do Egito antigo não narram eventos reais. Em vez disso, proporcionam o ingresso em um mundo solene e ritualístico que não contém elementos de sorte ou acaso. Os egípcios não possuíam historiografia como a conhecemos, nenhuma narrativa objetiva do passado. Em sua visão o passado só 19 Ibidem. p. 42. 34 interessava na medida em que era também o presente e poderia ser o futuro”20. De acordo com Loprieno21, nas últimas décadas do século XIX os egiptólogos apresentavam duas posições básicas a respeito da literatura egípcia: uns defendiam que a criação literária era associada a algum evento histórico, enquanto outros incluíam todas as formas possíveis de texto como literatura, “praticamente sem levar em conta qualquer consideração tipológica, podendo reunirse num mesmo conjunto: matéria funerária, narrativa, crônica etc.”22. Atualmente, porém, a tendência é a de se tentar compreender a obra em sua própria estrutura textual, além de suas relações contextuais e intertextuais como objeto de pesquisa. Já no que diz respeito à teoria, nem sempre existe concordância entre os egiptólogos, mas é consensual a existência de duas definições básicas: a linguagem literária em geral e o gênero literário em particular. Ao contrário dos formalistas que enxergam a literatura como uma forma “especial” de linguagem, em oposição à linguagem “comum” que comumente utilizamos, para Araújo, “A questão não reside em negar a linguagem literária como objeto específico, mas em ampliar a abordagem tendo em vista, entre outros, o fator capital da recepção, pois o que significa ‘fato literário’ para determinada época pode não ultrapassar o ‘fato linguístico’ em outra, e vice-versa”. Em um artigo de Ciro Flamarion Cardoso23, o autor diz que o fato literário possuiria uma conotação sociocultural, na qual os textos estariam divididos em sócioliterários e etnoliterários. Os textos sócioliterários seriam decorrentes de sociedades dotadas de uma definição clara a respeito do “status dos autores, do que seriam textos literários e seus gêneros (governados por regras mais ou menos Ibidem. p. 42. apud HORNUNG, Erik. Idea Into Image: Essays on the ancient Egypt thought. Nova York: Tinken, 1992. p. 154. 21 LOPRIENO, Antonio. “Defining Egyptian Literature: Ancient Texts and Modern Theories” in Ancient Egyptian Literature: History and Forms. Leiden, New York, Cologne: E.J. Brill, 1996. 22 ARAÚJO, op. cit. p. 36. 23 CARDOSO, Ciro. “Escrita, sistema canônico e literatura no antigo Egito” in: Margaret Bakos; Katia Maria Pozzer (org.). III Jornada de estudos do Oriente antigo: Línguas, escritas e imaginários. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1998. p. 95-144. 20 35 explícitas ou pelo menos identificáveis pela análise), e ainda, um público consumidor”24, enquanto os etnoliterários seriam aqueles que exerciam, em suas culturas de origem, papéis não-literários, mas que atualmente tratamos como se literários fossem. O caso egípcio constituiria uma exceção, uma peculiaridade no antigo Oriente Próximo, visto que os textos lá produzidos tinham como principal finalidade funcionar como uma literatura que associava o ensinamento ao lazer. Atualmente não resta dúvida para a grande maioria dos egiptólogos de que os textos literários egípcios constituem um exemplo pleno de socioliteratura. Durante o Reino Novo (c. 1550-1069 a.C.), começam a aparecer diversas narrativas que, muito provavelmente, tinham um público-alvo bastante restrito, o dos escribas cortesãos, mas conjectura-se que algumas delas fossem lidas ou encenadas para o público não letrado. Fica em evidência, então, uma nova função desta literatura ligada ao lazer e, algumas vezes, é possível até mesmo saber quem escrevera o texto seguindo certas regras de análise. Todos os fatores até aqui relatados mostram o quanto era rica a literatura egípcia. Tal fato era notório inclusive para as demais sociedades da Antiguidade, junto às quais era forte a reputação da qualidade literária egípcia e até mesmo sendo isso mencionado por membros e em textos de outros povos. 1.2.2. A Escrita e a Língua Egípcias Não se sabe ao certo o momento em que teria se dado o surgimento da Língua Egípcia e de suas formas escritas. De acordo com Harris, “A origem do egípcio é obscura, mas muitos traços semíticos da língua sugerem que, em algum momento, a língua dos habitantes do vale do Nilo, que eram, provavelmente, de origem africana, foi fortemente influenciada por imigrantes semitas vindos da Ásia. (...) O início de seus registros escritos coincide com o início da história egípcia, em algum tempo antes de 3000 a.C., tendo sobrevivido até a derrota final do paganismo pelo cristianismo pouco antes de 500 d.C. 24 Ibidem. p.103. 36 A escrita hieroglífica, isto é, hieróglifos (e a sua simplificação formal chamada hierática), e, também, a forma ainda mais simplificada chamada demótico, que provém do século VII a.C., apenas expressam as consoantes das palavras; é apenas o cóptico, o estágio da língua falada pelos cristãos egípcios (coptas) a partir do III século d.C. e escrito em letras gregas com uns poucos sinais adicionais para sons desconhecidos dos gregos, que também grava as vogais das palavras. (...) O cóptico, a última forma da língua egípcia, morreu em algum momento da Idade Média, mas um de seus dialetos é ainda usado em linguagem litúrgica na igreja cristã egípcia (cóptica)”25. Ao contrário do que ocorria no passado, presentemente existe a convicção de uma grande antiguidade da escrita no antigo Egito. Antes da decifração dos hieróglifos e da redescoberta da gramática do egípcio antigo, aqueles escritos sempre despertaram o interesse de muitos intelectuais. Por não os compreenderem, era comum que criassem uma imagem idealizada da civilização egípcia; e que as fontes disponíveis fossem interpretadas fantasiosamente. Desde as primeiras descobertas arqueológicas referentes ao Egito Antigo, os hieróglifos atraíam a atenção dos pesquisadores. Durante muito tempo, filólogos e diferentes especialistas em línguas tentaram decifrar aquela escrita. No entanto, a tradução da Língua Egípcia só foi possível graças à descoberta de um importante achado arqueológico: a Pedra de Roseta. Esta pedra, que é na realidade uma estela, foi encontrada no Egito por soldados do exército de Napoleão Bonaparte, em agosto de 1799. Alguns anos mais tarde, em 1801, ela foi cedida às autoridades britânicas e depois de passar alguns meses na Sociedade de Antiquários, em Londres, ela foi finalmente depositada no British Museum, na mesma cidade, onde permanece até hoje. A Pedra de Roseta (Fig.2) era dividida em três partes, como se pode observar na imagem a seguir, cada uma delas com um texto em uma escrita diferente − hieróglifos, caracteres demóticos e caracteres gregos −, sendo que dois textos estão em língua egípcia e um, em grego. O texto registra, em suas diferentes escritas e línguas, um decreto assinado no ano 196 a.C., sob o reinado de Ptolomeu V Epifânio (205 a 180 a.C.). Os esforços para a decifração dos escritos (com exceção do grego, há muito conhecido e estudado) presentes na pedra duraram muito tempo. Um médico britânico, chamado Thomas Young, estudou a pedra 25 HARRIS, op. cit. p. 209-210. 37 durante 20 anos, alcançando um progresso substancial. Entretanto, foi o estudioso francês Jean-François Champollion que entrou para a História como o grande responsável pela tradução daqueles escritos, em 1822, o que marcou o início da Egiptologia como ciência responsável pelo estudo de assuntos referentes ao antigo Egito. Embora por razões nacionalistas os britânicos tendam às vezes a exagerar o papel de Young, a diferença decisiva foi que Champollion conhecia o egípcio copta (cristão) e, portanto, originou, além de seu papel na decifração, os primeiros conhecimentos válidos de gramática do egípcio antigo. Desde seu esforço, um número considerável de gramáticas e trabalhos correlatos de grande confiabilidade referentes à Língua Egípcia foi produzido em diversos idiomas por competentes pesquisadores e o egípcio antigo tornou-se cada vez mais conhecido, permitindo um entendimento e tradução dos textos crescentemente confiáveis. 38 Fig.2 – Rosetta Stone. Fonte: http://www.britishmuseum.org/explore/highlights/highlight_objects/aes/t/the_rosetta_stone.aspx A designação ‘hieróglifo’, que literalmente significa “escrita sagrada”, foi atribuída à escrita dos antigos egípcios pelos gregos. Os hieróglifos são uma forma de escrita à base de imagens, isto é, pictográfica-fonética, que utiliza símbolos que tanto podem ser lidos diretamente por aquilo que representam, quanto emprega sinais com diferentes valores fonéticos. Ela passou a ser utilizada pelos egípcios por volta do ano 3000 a.C. e aos poucos foi se modificando até alcançar a sua forma 39 definitiva próximo ao ano 2700 a.C. Pelo que se sabe, esse modelo de escrita teria tido uma influência mesopotâmica, se bem que a prioridade de uma ou outra é assunto ainda debatido e a tendência atual consista em minimizar a influência asiática nas origens da escrita egípcia. De acordo com Margaret Marchiori Bakos, “Para grafar sua língua os antigos egípcios inventaram a escrita hieroglífica que, com sua mistura de signos fonéticos e de imagens, é considerada a mais bela entre todas as grafias conhecidas. Na antiga língua egípcia era chamada de ‘palavra de deus’. Os gregos mantiveram com o nome de hieróglifo, que significa ‘escrita sagrada’, com sentido original”26. Conforme Emanuel Araújo, a língua egípcia sofreu inúmeras transformações durante o período em que esteve em uso, podendo ser periodizada, grosso modo, em cinco grandes fases: “1) Egípcio arcaico, a língua do Reino Antigo e parcialmente do Primeiro Período Intermediário, em que aparecem por exemplo textos administrativos (como a Pedra de Palermo), religiosos (como o grande corpo dos Textos das Pirâmides) e autobiográficos em bom número de tumbas privadas. 2) Egípcio médio, também denominado egípcio clássico, língua que predominou no restante do Primeiro Período Intermediário, no Reino Médio e também parcialmente na 18ª dinastia, no início do Reino Novo. Convém observar, todavia, que em muitos textos se continuou a usar o egípcio médio até o Período Tardio. Em sua fase ‘clássica’ foi muito rico em narrativas, ensinamentos, hinos e textos funerários (são dessa época os Textos dos Sarcófagos). 3) Egípcio tardio ou neo-egípcio, documentado a partir da 18ª dinastia, no início do Reino Novo, mas sobretudo vigente na época Raméssida (19ª e 20ª dinastias), foi usado até o Terceiro Período Intermediário, mostrou-se também rico de textos administrativos, literários e funerários (em particular o Livro dos Mortos), além de escritos de poesia lírica amorosa. 4) Demótico, em vigor no início do Período Tardio até o final do Período Romano, foi o sucessor vernacular do egípcio tardio, ainda que gramaticalmente próximo deste (...); nele domina matéria jurídica, administrativa e comercial, mas a partir da época ptolomaica também composições literárias e textos científicos e religiosos. 5) Copta, o egípcio do período cristão, dominante desde o século IV d.C., suplantado pelo árabe a partir da segunda metade do século VII, nele reconhecendo-se uma estrutura vocálica tomada do BAKOS, Margaret Marchiori. Fatos e Mitos do Antigo Egito. 3ª Edição (revista e ampliada). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009, p. 134. 26 40 grego; observe-se ainda que no copta se distinguem cinco dialetos, o que leva à suposição de que no período faraônico também poderiam existir dialetos, não reconhecíveis, todavia, na escrita sem vogais” 27. Juntamente à escrita hieroglífica tradicional existia a hierática, que em grego significa “escrita dos sacerdotes”. Ela funcionava como uma espécie de grafia cursiva com sinais simplificados, permitindo que os textos fossem registrados mais rapidamente (por exemplo, quando os escribas da administração escreviam algo que lhes era ditado). Esta escrita possuía certas peculiaridades: era sempre escrita da direita para a esquerda e normalmente em colunas; a partir da XIIª dinastia passou a ser de praxe escrever em linhas horizontais, o que daí em diante praticamente se padronizou nos escritos em que se usava essa grafia. Ainda no Reino Médio (c. 2055-1650 a.C.), a escrita hierática dividiu-se em dois estilos distintos: o primeiro, empregado no registro rápido de textos burocráticos e cartas; e o segundo, com signos cuidadosamente grafados, destinado a escritos religiosos e literários. Com o passar do tempo, outras novas formas foram se desenvolvendo. No Terceiro Período Intermediário (c. 1069-656 a.C.), por exemplo, surgiu uma versão mais simplificada do hierático, que aos poucos foi sendo substituída pelo demótico, “escrita do povo”, a partir da XXVIª dinastia, permanecendo em voga pelo menos até o século V d.C. E, por fim, apareceu o copta, última escrita do antigo Egito, e que assim como as anteriores também era cursiva, sendo utilizada por aquela sociedade do século IV ao VII d.C., mas que ainda hoje permanece como língua litúrgica da Igreja Ortodoxa Copta e da Igreja Católica Copta. Segundo Emanuel Araújo, “Ainda hoje emprega-se o termo ‘ideografia’ para designar esse tipo de escrita, ultimamente tem-se preferido falar em ‘logografia’ (do grego lógos, ‘palavra’, e grápho, ‘escrever, gravar, desenhar’), de vez que ai se envolve o emprego direto de sons, e não apenas de ideias figuradas. O sistema logográfico produziu significativo repertório de sinais consonânticos com a função de morfemas, e na leitura esses sinais adquiriram valor de sílabas, formadas por consoantes simples, 27 ARAÚJO, op. cit. p.23 41 que compunham o esqueleto da palavra. A escrita egípcia possuía fonogramas constituídos de 24 consoantes básicas para a formação de sílabas e ainda centenas de sinais monossilábicos, dissilábicos e trissilábicos, muitos dos quais podiam também servir como ‘determinativos’ (taxogramas), que expressavam elementos semânticos mas não fonéticos, utilizados para evitar ambiguidade quando o mesmo desenho expressasse mais de um significado ou fosse empregado em contextos gramaticais diversos”28. Na “Síntese da Gramática do Neoegípcio”29, elaborada por Ciro Flamarion Cardoso para a utilização na disciplina de Língua Egípcia, lecionada no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF), no primeiro semestre de 2011, são apresentadas logo no início algumas generalidades acerca do neoegípcio. Primeiramente, ele destaca que esta língua começou a ser falada por volta do século XVI a.C., quando vislumbres da mesma surgiram em escritos registrados em Egípcio Médio, tendo perdurado pelo menos até o século VII a.C. Mas foi em meados do século XIV a.C. que ela passou a ser a língua vigente em textos literários e administrativos, atingindo o seu auge durante as XIXª e XXª dinastias, entre os séculos XII e XI a.C., quando foi produzido um grande número de documentos utilizando o Neoegípcio, ou pelo menos do qual se conservaram a maior parte de escritos nessa linguagem. Ao comparar o Neoegípcio à sua forma precedente da língua, o Egípcio Médio, Cardoso ressalta as principais características que os diferenciam, dos quais, dentre outras, podem ser citadas algumas das mais relevantes: 1. Gênero e número passaram a ser indicados por artigos, demonstrativos e possessivos, antecedendo o substantivo e deixando claro se é masculino ou feminino, singular ou plural. O gênero neutro, que no Egípcio Médio era indicado pelo feminino, passou a ser apontado pelo masculino. 2. Surgiram os artigos definidos e indefinidos. Substantivos definidos eram aqueles precedidos por artigos definidos, adjetivos possessivos, demonstrativos, ou acompanhados pelo adjetivo nb (“cada”, “todo”, “todos”). Já os substantivos indefinidos vinham antecedidos de artigo Ibidem. p. 24-25. CARDOSO, Ciro. Síntese da Gramática do Neogípcio Texto inédito cedido gentilmente pelo autor. Nitéroi, 2011. 28 29 42 indefinido, de outro elemento de definição que acusasse o caráter indefinido do substantivo, ou, ainda, eram indicados pela ausência de um desses elementos. 3. Em Egípcio Médio, a formação de proposições nominais substanciais era constituída por três membros fundamentais. Em Neoegípcio, um desses membros desaparece, a ligação pw, passando, então, as proposições nominais a serem formadas por apenas dois elementos essenciais. 4. Nas sintaxes frasais no Egípcio Médio, o comum era que o verbo antecedesse o sujeito. Já em Neoegípcio, a tendência principal de construção frasal passa a ser a sequência sujeito + predicado (verbal ou não verbal) + complemento(s), aproximando a constituição das frases desse período linguístico às das línguas modernas, o que acaba por facilitar a compreensão e a tradução. 5. Os verbos passam a apresentar uma temporalidade (passado, presente e futuro) mais claramente expressada por conjunções equivalentes, principalmente através do emprego de conjunções perifrásticas, isto é, constituídas por um verbo principal e um verbo ou partícula auxiliar. 6. O morfema iw passa a indicar, impreterivelmente, que a frase por ele introduzida é uma proposição circunstancial (subordinada ou continuativa), e sob nenhuma circunstância uma proposição inicial (principal). 7. Uma forma de “escrita silábica”, conhecida internacionalmente como group writing, passa a ser aplicada com frequência. Nela aparecem inúmeros signos ociosos que necessitam ser ignorados na transliteração. Passa também a ser mais usual do que nos períodos anteriores o uso de signos bilaterais para expressar uma única consoante ou semiconsoante. “As razões do uso da escrita silábica prendem-se a dois fatores: (1) a grafia em egípcio de termos e topônimos tomados de línguas estrangeiras; (2) todos os casos em que o escriba, ao grafar, não se sentisse ‘motivado’, isto é, quando a palavra não correspondesse à uma raiz já consolidada na língua escrita por longo uso, o que acontecia, por exemplo, ao grafar vocábulos que antes fossem de uso exclusivamente oral; ou ainda, quando a etimologia e a origem da palavra egípcia tivesse sido esquecida. O group writing consiste em transportar para uma palavra alguns dos signos que servem para escrever outra, quando o escriba estava tão acostumado a escrever 43 certos grupos de signos que às vezes os grafava no lugar errado, em especial ao se tratar de termos de significado correlato”30. 8. Algumas vezes a grafia é modificada para que fique mais próxima da pronúncia efetiva, ou porque algumas desinências deixaram de ser pronunciadas ou mesmo graças às mudanças sonoras. 9. Algumas palavras, por terem se tornado obsoletas, começam a ser substituídas por outras, que já existiam anteriormente, mas que nesse momento passam para primeiro plano. 10. Há, também, algumas palavras que permanecem sendo usadas frequentemente, mas mudam de sentido ou adquirem novas conotações. Araújo resume as mudanças sofridas pela Língua Egípcia ao longo do tempo, dizendo que “Houve modificações sensíveis na língua durante sua longa existência. A língua do período antigo conformava-se a uma gramática sintética, do modo que exibia, por exemplo, sufixos morfológicos para indicar gênero a número (...), não registrava o artigo definido (...) e empregava a ordem sintática verbo-sujeitoobjeto na formação verbal (...). A partir do egípcio tardio ou neoegípcio, porém, observa-se uma nítida evolução fonológica, o que resultou numa gramática analítica, e assim, por exemplo, os sufixos morfológicos que indicavam gênero desapareceram, substituídos pelo artigo definido que abrangia ainda o demonstrativo ‘este’ e o numeral ‘um’ (...); alterou-se também a ordem sintática da estrutura verbal para sujeito-verbo-objeto (...), todavia sem sobrepor-se drasticamente ao uso anterior. Observe-se, de qualquer modo, que as diferenças terminaram por ser tão profundas que a língua a clássica do egípcio médio mal podia ser compreendida pela gente comum – e até mesmo por escribas – do período neo-egípcio ou egípcio tardio”31. No caso específico do Conto de Apepi e Sequenenra, embora o texto tenha sido escrito em Neoegípcio, nele são encontrados muitos exemplos de arcaísmos advindos ainda do Egípcio Médio. CARDOSO, Ciro Flamarion. Síntese da Gramática do Neoegípcio. (Não publicada). Elaborada para a utilização na disciplina de Língua Egípcia, lecionada no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF). Niterói, 2011. 31 ARAÚJO, op. cit. p. 24. 30 44 Os responsáveis pelo complexo trabalho de confecção dos textos egípcios e por suas eventuais ilustrações eram os escribas. Graças a esses profissionais temos acesso às mais variadas informações acerca da sociedade e da sua maneira de pensar. O processo de aprendizado pelo qual esses indivíduos passavam era bastante longo e fatigante, existindo inclusive registros de castigos físicos, e perdurava até que eles dominassem por completo as habilidades necessárias para a execução de sua função. Seu árduo treinamento era feito mediante ditados e cópias, muitas destas sobreviventes e encontradas, o que nos possibilitou o acesso a diversos escritos, não só literários, mas, ainda, burocráticos. Esses prestigiados trabalhadores exerciam suas atividades em repartições do Estado, em templos ou a serviço de nobres e ricos senhores. Alguns, inclusive, costumavam alugar seus serviços à população iletrada. O principal centro de formação de escribas era a “casa da vida” (per ānkh), mantida nos mais importantes templos do Egito. De acordo com Araújo, nesses locais além “de funcionar como escola, ali eram produzidos e copiados textos nos vários domínios do conhecimento, como astronomia, religião, medicina, cosmografia, matemática, geografia e, naturalmente, literatura”..32 Essas casas contribuíram de maneira inestimável para a conservação e transmissão do conhecimento por meio dos textos que foram ali feitos ou recopiados. Papel semelhante foi realizado pela “casa dos livros” ou “casa dos rolos de papiro” (per medjat), que funcionava como biblioteca e, provavelmente, formava um conjunto com a “casa da vida”. 32 Ibidem. p. 34. 45 CAPÍTULO II A Contenda de Apepi e Sequenenra 2.1. APRESENTAÇÃO DA FONTE Antes de tudo faz-se imprescindível apresentar-lhes a nossa principal fonte de estudos, a Contenda de Apepi e Sequenenra, para que os dados que serão expostos logo a seguir acerca deste documento sejam mais bem compreendidos e para que a partir de sua leitura possamos contextualizar não apenas o conteúdo textual propriamente dito, mas também a maneira como essa narrativa foi escrita. Além disso, serve ainda como uma forma de ilustrar tudo aquilo que foi dito no capítulo anterior a respeito dos contextos histórico e literário desse documento. A tradução a seguir foi feita pelo professor Ciro Flamarion S. Cardoso e não encontrase publicada até o presente. A Contenda de Apepi e Seqenenra (Papiro Sallier I: BM no 10.185)33 Acontecia, pois, (que) a terra do Egito (estava) na aflição, (já que) não havia um Senhor (vida, prosperidade, saúde para ele!) como rei da(quela) época. Acontecia, então, (que) o rei Sequenenra34 (vida, prosperidade, saúde para ele!) era governante (vida, prosperidade, saúde para ele!) da Cidade do Sul (Tebas). (Mas havia) aflição na cidade dos asiáticos, (pois) o Príncipe Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) (estava) em Avaris. Entrementes, o país inteiro provia-lhe (contribuições), submetido a seus tributos; o Norte, igualmente, tributava(-lhe) todos os bons produtos do Delta. Então, o rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) tomou para si Sutekh35 como deus. Ele se recusava a servir a todos os deuses do país inteiro, Tradução do Prof. Dr. Ciro Flamarion S. Cardoso. O nome Seqenenra significa algo como “Aquele tornado corajoso por Ra”. Com efeito, o verbo qni significa “ser corajoso”, sendo sqni o verbo causativo correspondente. 35 Forma que o deus Set egípcio, assimilado a uma divindade asiática, assumiu no Delta. 33 34 46 exceto Sutekh. Ele (lhe) construiu um templo, um trabalho perfeito (para a) eternidade, ao lado da casa do rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!). E ele aparecia em glória, cedo pela manhã, para fazer oferenda (...) diariamente a Sutekh, (enquanto) os dignitários do palácio (vida, prosperidade, saúde para ele!) portavam guirlandas, como aquilo que é feito no templo de Pra-Harakhty, muito exatamente. Então, quanto ao rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!), ele desejava enviar uma mensagem agressiva ao rei Sequenenra (vida, prosperidade, saúde para ele!), o Príncipe da Cidade do Sul. Então, após muitos dias (se passarem) depois disso, o rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) fez com que se convocasse os dignitários do seu (palácio?) (e propôs-lhes fazer) enviar uma mensagem (...), uma reclamação oral (...) (relativa ao) rio, (...) os escribas, os sábios (...)(e) os dignitários maiores (...) (Eles disseram:) “..., (ó) soberano (vida, prosperidade, saúde para ele!), nosso senhor! (...)‘(...) o pântano de hipopótamos que está a leste da Cidade do Sul, (pois) eles não deixam vir-nos o sono, de dia (nem) de noite, (já que) o (seu) ruído (está) no ouvido (dos de) nossa cidade’ ”. (...) Então o Príncipe da Cidade do Sul (...) um decreto (...) (Amon estava) com ele como protetor. Ele não se confiava a todos os deuses do país inteiro, exceto a Amon-Ra, rei dos deuses. Então, após (se passarem) vários dias depois disso, o rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) enviou (uma mensagem) ao Príncipe da Cidade do Sul, a respeito da reclamação oral que lhe haviam sugerido os seus escribas e sábios. Então, (quando) o mensageiro do rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) chegou até o Príncipe da Cidade do Sul, levou-se-o à presença do Príncipe da Cidade do Sul. Então, Sequenenra disse ao mensageiro do rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!): “Para que foste enviado à Cidade do Sul? Por que me abordas nestas viagens?” O mensageiro então lhe respondeu: “Foi o rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) que te enviou (uma mensagem), dizendo: ‘Faze com que seja abandonado o pântano de hipopótamos que (está) a leste da Cidade do Sul, já que eles não deixam vir-me o sono, de dia (nem) de noite. O barulho (deles) está no ouvido (dos de) sua cidade’.” Então o Príncipe da Cidade do Sul ficou estupefato por um longo momento: acontecia-lhe não saber replicar ao mensageiro do rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!). Então o Príncipe da Cidade do Sul lhe disse: “Assim, foi o que o teu senhor (vida, prosperidade, saúde para ele!) 47 ouviu falar a respeito do pântano que (está) a leste da Cidade do Sul, nesses termos?” Então o mensageiro lhe disse: “(Pensa sobre) os assuntos a respeito dos quais ele me enviou.” Então o Príncipe da Cidade do Sul fez com que cuidassem do mensageiro do rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) com todas as coisas boas: carne, bolos (...). (...) “‘Quanto a tudo aquilo que tu me disseres, eu o farei’− assim tu lhe dirás.” (...) Então o mensageiro do rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) pôs-se a viajar em direção ao lugar onde estava o seu Senhor (vida, prosperidade, saúde para ele!). Então o Príncipe da Cidade do Sul fez com que fossem convocados os seus dignitários mais graduados, assim como todos os oficiais principais a seu serviço. Ele repetiu-lhes todas as reclamações orais a respeito das quais lhe enviara (uma mensagem) o rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!). Eles se calaram unanimemente por um longo momento e não souberam responder-lhe, bem ou mal. Então, o rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) enviou (uma mensagem) a (...) 48 2.2. O TEXTO E SUA ESCRITA Apesar de escrito no Reino Novo (c. 1550-1069 a.C.), o Conto de Apepi e Sequenenra aborda, ficcionalmente, a vida de personagens históricos do final do Segundo Período Intermediário (c. 1650-1550 a.C.): o faraó hicso Apepi, da XVª dinastia, e o rei Sequenenra, da XVIIª dinastia tebana. A contenda de Apepi e Sequenenra encontra-se preservada em uma única versão: o Papiro Sallier I. Tal texto foi registrado em escrita hierática, nas páginas um, dois e no começo da terceira do papiro, que atualmente se acha no British Museum (British Museum, 10185). Esse documento foi redigido durante a XIX dinastia, tendo sido escrito no período de reinado do faraó Merenptah (1224-1204 a.C.). Trata-se de uma cópia produzida pelo famoso escriba Pentaur36, como exercício de escrita, a partir de um antigo documento original que se perdeu, o qual certamente dataria do início do Reino Novo (c. 1550-1069 a.C.). De acordo com Lefebvre37, a contenda foi registrada em língua e estilo bastante pobres. O texto apresenta problemas em algumas passagens, como omissões e até mesmo erros, provavelmente suscitados por negligência ou pela inexperiência do jovem escriba Pentaur, sendo a maior de todas as dificuldades, é claro, o fato de o texto encontrar-se inconcluso. Para o egiptólogo francês Gaston Maspero, “Durante muito tempo lhe atribuíram o valor de um documento histórico; o estilo, as expressões empregadas, o próprio conteúdo do texto, tudo indica um romance onde os papéis principais são interpretados por personagens tomados de empréstimo dos livros de história, mas os dados advêm quase inteiramente da imaginação popular.”38 Também conhecido por ter feito uma cópia do famoso texto egípcio antigo “Poema de Kadesh”, que relata epicamente a grande batalha do faraó Ramsés II, pai de Merenptah, no ano 5 de seu reinado: a Batalha de Kadesh. 37 LEFEBVRE, Gustave. “La Querelle D’Apopi et de Séqenenrê” in Romans et Contes Égyptiens de L’Époque Pharaonique. Paris: Librairie D’Amérique et D’Orient, 197, p.132. 38 MASPERO, Gaston. Contes Populaires de l’Égypte Ancienne. Paris: G.-P. Maisonneuve et Larose, 1988, p. 187. “On lui a longtemps attribué la valeur d’un document historique ; le style, les expressions employées, le fond même du sujet, tout indique un roman où les rôles principaux sont tenus par des personnages empruntés aux livres d’histoire, mais dont la donnée est presque entière de l’imagination populaire” 36 49 A fonte original, em hierático, foi publicada em livros de vários idiomas, destacando-se algumas publicações fac-similares, das quais ressaltamos a de Edward Hawkins, Select Papyri in the Hieratic Character from the Collections of the British Museum39, de 1841, e a versão fotografada de Wallis Budge, Facsimiles of Egyptian Hieratic Papyri in the British Museum40, de 1923. Entretanto, a edição crítica padrão do texto egípcio original é a de Alan Gardiner, The Quarrel of Apopis and Sekenré41 que será a utilizada neste trabalho. Consultamos, outrossim, diversas traduções, por exemplo, a versão anotada em francês de Gustave Lefebvre, Romans et Contes Égyptiens42; a de Gaston Maspero, Contes Populaires de l’Égypte Ancienne43; a portuguesa, muito livre, de Luís Manuel Araújo, Apopi e Sekenenré 44; e a de Ciro Flamarion S. Cardoso, que não foi publicada, mas servirá de base para esta pesquisa. A partir daí foi possível iniciar uma análise mais detalhada do conto. HAWKINS, Edward. Select Papyri in the Hieratic Character from the Collections of the British Museum. London: British Museum, 1841-1860. 40 BUDGE, E. A. Wallis. Facsimiles of Egyptian Hieratic Papyri in the British Museum, 2ª série, Londres, 1923, pl. LIII-LV. 41 GARDINER, Alan H. (Ed.). “The Quarrel of Apopis and Sekenré” in Late-Egyptian Stories. Bruxelles: Fondation Égyptologique Reine Élisabeth, 1981 [1932], p. 85-88. 42 LEFEBVRE, Gustave. op. cit. p.131-136. 43 MASPERO, Gaston. op. cit. p.187-196. 44 ARAÚJO, Luís Manuel de. “Apopi e Sekenenré” in Mitos e Lendas do Antigo Egito. Lisboa: Livros e Livros, 2005, p.191-194. 39 50 2.3. CONTEXTUALIZANDO Como um único manuscrito desse texto foi encontrado até o presente momento, basearemos nele o nosso estudo. Utilizando-se dele é possível levantar alguns interessantes questionamentos, dentre os quais dois se destacam como os mais fundamentais para este trabalho: (1) a disputa entre governantes – Apepi, hicso, e Sequenenra, egípcio; (2) e a oposição entre deuses, nesse caso especificamente Amon-Ra e Seth, paralela à dos reis que lhes prestavam culto monolátrico. Apesar de escrito no Reino Novo (c. 1550-1069 a.C.), o Conto de Apepi e Sequenenra aborda, ficcionalmente, um episódio de meados do século XVI a.C., envolvendo personagens históricos do final do Segundo Período Intermediário (c. 1650-1550 a.C.): o faraó hicso Apepi, da XVª dinastia, e o rei Sequenenra, da XVIIª dinastia tebana. O curto texto da contenda faz alusão ao início da guerra que opôs Sulistas, sob o comando de Sequenenra, e Nortistas, liderados por Apepi, pelo controle do Egito, na parte final do Segundo Período Intermediário, entre os anos de 1650 a.C. e 1550 a.C., aproximadamente. O território dominado pelos egípcios tinha como capital a cidade de Tebas, na parte Sul do reino, enquanto os hicsos governavam sobre uma grande extensão territorial, que se estendia, em seu apogeu, do Delta do Nilo até Heracleópolis, tendo como capital a cidade de Avaris, ao Norte. A seguir temos dois mapas (Fig.3 e Fig.4) do Egito Antigo, onde podemos observar a disposição geográfica das cidades supracitadas: 51 Fig.3 – Mapa do Egito e regiões adjacentes. Referência: BAINES, John. Visual and Written Culture in Ancient Egypt. New York: Oxford University Press, 2007. p.s/n. 52 Fig.4 – Egeu, Egito e Oriente Próximo. Referência: GRALHA, Julio César Mendonça. Deuses, faraós e o poder: legitimidade e imagem do deus dinástico e do monarca no antigo Egito. Rio de Janeiro: Barroso Produções editoriais, 2002, p.27. 53 O conto se passa em uma época em que o Egito encontrava-se sob dominação hicsa, durante o Segundo Período Intermediário, mais especificamente em seu final, colocando em cena o rei hicso Apepi, adorador de Sutekh, e o rei egípcio Sequenenra, que continuava exercendo sua autoridade sobre Tebas e sobre a parte meridional do Egito. No texto, Apepi envia uma mensagem provocativa para Sequenenra, utilizando-se da desculpa de que os hipopótamos tebanos estariam impedindo os habitantes de Avaris, capital hicsa, de dormir. Se levarmos em consideração a localização geográfica das duas cidades (a primeira situada ao Sul do Egito, enquanto a segunda situava-se ao Norte, próximo ao Delta), que ficavam a centenas de quilômetros distantes uma da outra, perceberíamos ser essa uma reivindicação absurda, já que seria humanamente impossível que algum tipo de ruído fosse ouvido por qualquer indivíduo de uma distância tão grande. Para Claude Vandersleyen, muitas das interpretações que compreendem a mensagem enviada de Avaris para Tebas em seu sentido literal e de maneira tão simplificada seriam de pouca credibilidade e outras versões, um pouco mais contundentes, necessitariam ser analisadas: “O início do conto deixa perceber uma tensão entre os dois líderes; infelizmente o texto se perdeu imediatamente após o anúncio da enigmática mensagem dos hicsos, vinda de Avaris, que parece queixar-se do barulho que fazem os hipopótamos de Tebas. As explicações propostas acerca dessa mensagem são simbólicas e de pouca credibilidade. A mais lógica é aquela de Goedicke; ele pensa que a palavra geralmente traduzida como ‘hipopótamo’ seria uma grafia para uma palavra de origem semítica que significa ‘soldado’; Apepi estaria reclamando da presença de ‘mercenários’ a leste de Tebas, o que pareceria uma ameaça; esta engenhosa hipótese, no entanto, carece de confirmação filológica.”45 De qualquer modo, essa queixa, aparentemente jocosa, provavelmente estaria encobrindo alguma outra reclamação mais séria. No primeiro momento, a VANDERSLEYEN, Claude. L’Égypte et la Vallée du Nil. Tome II – De la fin de l’Ancien Empire à la fin du Nouvel Empire. Paris: Press Universitaires de France, 1995. p. 191. « Le début du conte laisse pressentir une tension entre les deux chefs; malheureusement le texte est perdu aussitôt aprés l’énoncé de l’énigmatique message du hyksos, vivant à Avaris, qui paraît se plaindre du bruit que font les hippopotames à Thèbes. Les explications proposées à ce message sont symboliques et peu crédibles. La plus logique est celle de Goedicke ; il pense que le mot habituellement traduit par « hippopotame » est une graphie pour um mot d’origine sémitique signifiant « soldat »; Apophis se plaindrait de la présence de « mercenaires » à l’est de Thèbes, ce qui lui semblerait une menace; cette ingénieuse hypothèse manque toutefois de confirmation philologique ». 45 54 atitude de Sequenenra demonstra-se ser conciliatória: diz ao mensageiro de Apepi que acatará as ordens e a seguir convoca seus altos-funcionários e os grandes da corte para expor o pleito estrangeiro. A narrativa é encerrada bruscamente e não ficamos sabendo como teria se dado o desfecho desta contenda. Todavia, historicamente sabemos que no período de governo desses dois faraós houve uma longa guerra entre hicsos, do Norte, e tebanos, que conseguiram agrupar junto de si todo o Alto e o Médio Egito, numa batalha que, de acordo com Luís Manuel de Araújo, “nos tempos seguintes, seria vista como uma luta de ‘libertação nacional’, escondendo que os soberanos hicsos tinham o apoio da população do Delta”46. A múmia de Sequenenra (Fig.5), cujo crânio repleto de marcas profundas de golpes de machado e lança, como se pode observar acima, encontra-se atualmente no Museu do Cairo. Ela foi descoberta por arqueólogos, no ano de 1881, em uma tumba próxima a Deir-el-Bahri, para onde teria sido levada ainda na Antiguidade, objetivando-se evitar roubos e sua total destruição por ladrões de tumbas, algo comum no período Raméssida tardio. Em 09 de junho de 1886 foi transferida para o Cairo a fim de ser examinada pelo egiptólogo francês Gaston Maspero, chefe do Serviço de Antiguidades na época. Passou, ainda, por uma série de novas análises no século seguinte, dentre elas a feita na década de 1970 por James Harris e sua equipe, em que utilizaram nela pela primeira vez técnicas de raios-X, o que permitiu uma análise um pouco mais aprofundada dos restos mortais do faraó. ARAÚJO, Luís Manuel de. “Apopi e Sekenenré” in Mitos e Lendas do Antigo Egito. Lisboa: Livros e Livros, 2005, p. 193. 46 55 Fig.5 – Múmia de Sequenenra. Foto de Patrick Landmann/Cairo Museum/Getty Images. Embora os registros acerca da morte de Sequenenra sejam bastante escassos, uma das hipóteses mais aceitas pela maioria dos egiptólogos a esse respeito é que o faraó teria morrido justamente na guerra de libertação contra os hicsos, empreendida pelos egípcios, sendo sua múmia, por conseguinte, o principal vestígio que no serve como testemunha do violento combate. Se procurarmos fazer uma interligação entre o contexto histórico e o propriamente literário do texto, uma das conclusões plausíveis para o conto seria, portanto, o desenlace bélico. Posteriormente, os dois filhos de Sequenenra, o faraó tebano, teriam finalmente dado fim ao domínio hicso, reconquistando as terras egípcias e expulsando-os de seu território, iniciando, assim, uma nova dinastia e inaugurando o novo período da história egípcia, o Reino Novo (c. 1550-1069 a.C.). Como bem descrito por Luís Manuel de Araújo: “o rei Kamés (o último da XVII dinastia) expulsaos do Médio Egito e ataca no Delta, deixando o trabalho final de expulsão definitiva 56 dos Hicsos do território egípcio para o seu irmão Ahmés, fundador da XVIII dinastia e do Império Novo”47. Outro ponto interessante acerca da contenda, mas que não é o objeto principal deste trabalho, refere-se a ser ela o primeiro texto cronologicamente de uma sequência de escritos, de diferentes civilizações e dos mais variados períodos históricos, em que aparece um determinado governante exigindo de outro algo visivelmente absurdo, tema este popular em todo o Oriente, passando pelas “Mil e Uma Noites” e por La Fontaine, em “A Vida de Esopo, o frígio”. Lalouette faz referência a essa questão, quando diz que “Este texto pode, à primeira vista, surpreender. Mas, como Maspero e Lefebvre estabeleceram, ele está ligado sem dúvida a uma tradição antiga, em que os reis dirigiam por vezes uns aos outros os problemas a resolver, mediante o pagamento de uma multa, se a resposta não fosse justa. Todos conhecem a famosa pergunta que Nectanebo (faraó da XXXª dinastia) coloca para Esopo: ‘Eu tenho éguas no Egito que engravidam ao relinchar dos cavalos próximos à Babilônia.. O que você responderia a isso?’”48 Ibidem. p.193-194. LALOUETTE, op. cit. p. 115. « Ce texte peut, au premier abord, surprendre. Mais, ainsi que Maspéro et Lefebvre l’ont établi, il se rattache sans doute à une tradition antique, selon laquelle les rois s’adressaient parfois les uns aux outres des problèmes à résoudre, moyennant paiement d’une amende si la réponse n’était pas juste. On connaît la fameuse question que Nectanebo (pharaon de la XXXᵉ dynastie) posa à Ésope: ‘J’ai des cavales en Égypte qui conçoivent au hennissement des chevaux qui sont devers Babylone. Qu’avez-vous à répondre là-dessus ?’ » 47 48 57 2.4. A QUESTÃO POLÍTICA Na Contenda de Apepi e Sequenenra existem dois grupos distintos e opostos de personagens: os hicsos e os egípcios. De um lado aparecem o soberano hicso Apepi, seus conselheiros e o deus Seth (sob a forma asiática de Sutekh); do outro, o governante egípcio Sequenenra, seus conselheiros e o deus Amon-Rá. Esta oposição entre os dois faraós está presente em todo o texto, onde é possível perceber uma simetria de signos inversos, isto é, o texto é proporcional, simétrico, à medida que se fala de um faraó, logo após fala-se do seguinte, mas contrapondo um ao outro em diversos aspectos. Logo nas primeiras linhas do conto, fica claro um dos principais problemas enfrentados no antigo Egito naquele momento histórico, fazendo especial referência à desordem cósmica trazida por não haver um verdadeiro faraó e por um governante estrangeiro (asiático, mais especificamente), governar e tributar o país, o que contrariava por completo o caráter da monarquia divina egípcia. Ao mencionar que “a terra do Egito (estava) na aflição, (já que) não havia um Senhor (vida, prosperidade, saúde para ele!) como rei da(quela) época”, o texto deixa claro que, embora existissem indivíduos responsáveis pelo controle do Egito, na realidade não existia um verdadeiro faraó, no sentido amplo do termo, isto é, como aquele que era visto não apenas como o administrador máximo de todo o reino e seus habitantes, mas, também, responsável por uma série de outras atribuições, como a de chefe do exército, primeiro magistrado e sacerdote supremo do Egito, para citar algumas, tendo em vista que o poder estava dividido entre dois indivíduos, um estrangeiro e outro egípcio (sendo este subordinado ao primeiro), e não centralizado, como deveria ocorrer. A subordinação de Sequenenra, o soberano tebano, a Apepi, o dominador hicso, fica clara quando logo na introdução do texto, ao se dizer que embora o egípcio fosse governante da Cidade do Sul (Tebas), o país inteiro, tanto o Norte quanto o Sul, estava submetido a pagar tributos ao hicso, que tinha sua capital em Avaris, no Delta. Apepi estaria, portanto, usurpando o poder que de acordo com o caráter divino da monarquia régia egípcia, por direito, caberia a um egípcio pertencente à linhagem dinástica real. 58 Analisando a fonte cuidadosamente, desde o início da contenda é notável uma euforização direta do faraó tebano Sequenenra, ao mesmo tempo em que é percebida uma disforização indireta, referente à Apepi, pelo escritor do texto, provavelmente por ser tal autor egípcio, que muitas vezes ressalta positivamente o soberano egípcio, enquanto a visão acerca do rei hicso é negativa a maior parte do tempo. Outro elemento que merece atenção no conto é a alusão à existência de uma forte oscilação na maneira de se referir aos governantes durante todo o texto. Isso se deveria, é claro, ao fato já citado anteriormente de que na realidade não havia um verdadeiro faraó no Egito daquela época, o que tornaria, pelo menos em um primeiro momento, um tanto complicada e fora dos padrões a utilização de qualquer nomenclatura para se referir aos soberanos do Segundo Período Intermediário. No capítulo seguinte será apresentado o levantamento feito dessas titulaturas a partir da fonte juntamente com a análise de todo o conto. De qualquer modo, fica evidente que, embora no início do texto seja dito que não havia um Senhor como rei naquela época, durante todo o conto ocorre uma maior valorização do poder de Apepi, como pode ser percebido através dos títulos por ele recebidos. Tendo em vista que o Egito estava sob domínio hicso durante o período retratado na fonte, fica clara a subordinação de Sequenenra a Apepi, o que é incontestável. Como não dispomos do texto completo, estas contagens são sujeitas a caução. Não obstante, o modo como é tratado o rei hicso Apepi demonstra que este era legitimamente reconhecido por Sequenenra, o rei egípcio, já que ao se referir ao primeiro, a fórmula faraônica cerimoniosa “vida, prosperidade, saúde para ele!” era normalmente utilizada. Tais saudações rituais costumam acompanhar todos os nomes reais ou expressões que remetam de algum modo a reis, indicando, portanto, a oficialização do poder daquele governante. Um aspecto bastante interessante na escrita egípcia era a crença específica que envolvia o poder da palavra, principalmente no que diz respeito a nomes. Segundo Araújo, “A representação de um objeto (na arte a na escrita) tinha o proposito de fazê-lo ‘viver’ para sempre, (...), porquanto a escrita tinha o poder de dar vida àquilo que retratava ou expressava. De vez que o nome de uma pessoa abrigava a sua própria identidade, quando escrito 59 tinha de ser protegido a jamais poderia ser apagado, sob pena de privar seu dono da existência eterna. O cartucho que envolvia o nome do faraó e de certos deuses tinha justamente essa finalidade, assim como o recurso à criptografia, que não só ocultava o nome, como condensava os atributos da identidade de seu portador”49. Em particular, na Contenda de Apepi e Sequenenra é interessante notar que não apenas os nomes dos soberanos apareciam dentro de cartuchos como, também, o ocorria com a própria palavra “governante”, o que definitivamente não era nada comum de acontecer em textos egípcios. Nas vezes em que a civilização egípcia antiga esteve sob o domínio de povos estrangeiros, era muito corriqueira a ocorrência de um processo de egipcianização por parte dos dominadores. Este fato pode ser muito bem observado a seguir, na descrição detalhada da egiptóloga francesa Claire Lalouette: “Se os egípcios parecem ter tolerado mal a presença desses estrangeiros no seu país, em contraposição, no domínio espiritual, uma certa simbiose ocorreu. É certo que esses asiáticos, nômades em sua maioria, ao se tornarem residentes em um dos países mais prósperos do Oriente, tentaram adaptar-se ao prestigioso ‘modelo’ egípcio; muitos dos soberanos hicsos possuíam nomes teofóricos, à moda egípcia, formados com o nome do deus Rá: o (ou os) rei Apepi tinha como primeiros nomes Âaouserrê, ‘Grande é a força de Rá’ ‒ Nebkhepeshrê, ‘Rá é o senhor do poder’ ‒ Âakenenrê, ‘Grande é o valor de Rá’. Apepi é também, ainda em egípcio, ‘o filho do corpo de Rá’, ‘a imagem viva de Rá na terra’, esses epítetos, alguns dos quais carregam um aspecto guerreiro, até então desconhecido, do deus heliopolitano, são listados sobre uma paleta que o escriba real Ityou recebeu como presente de seu senhor, o rei Apepi. Eles refletem o fato de que os estrangeiros adoravam o deus Rá juntamente com Sutekh e Baal. Que a união ideológica se fez em torno do deus-sol não é surpreendente; no tempo de Snéfru, com nós já vimos, o príncipe da Biblos se intitulava ‘filho de Rá dos países estrangeiros’; sob vários nomes, o astro doador de vida era adorado em todo o Oriente, e é ainda o culto solar que, sob os Tothméssidas e Raméssidas, vincula espiritualmente as diversas partes do Império do Egito. Não se pode subestimar a contribuição ideológica dos hicsos no Egito; os deuses asiáticos, Sutekh, Baal, Astarté, que, na época de Ramsés, desempenhariam um grande papel no novo pensamento imperial, começaram então a penetrar no panteão egípcio ‒ o deus da lua igualmente, adorado pelos beduínos e pelos nômades e Ásia: a onomástica do início da XVIIIª dinastia evidencia isso. Nos tempos antigos, não existia um ponto de ‘fronteira’ 49 ARAÚJO, op. cit. p. 26. 60 espiritual; multiplicar os deuses, servia para aumentar a eficiência da proteção mágica divina; a intolerância ainda não existia”50. Note-se que as escavações de Avaris não apoiam a afirmação de Lalouette de serem os hicos, sobretudo nômades: sua cultura material é a de citadinos cananeus. O caso específico de Apepi, um dos mais conhecidos rei hicso que dominou o Egito durante o Segundo Período Intermediário e personagem da fonte histórica utilizada como base nesta pesquisa, aparece justamente como um dos principais exemplos dessa egipcianização, como pode ser observado na citação acima, quando a autora demonstra o caso específico dos nomes régios adotados por aquele soberano e que fazem referência direta a elementos da religião egípcia. LALOUETTE, op. cit. p. 100-101. « Si les Égyptiens semblent avoir mal toléré la présence de ces étrangers dans leur pays, par contre, dans le domaine spirituel, une certaine symbiose s’est opérée. Il est certain que ces Asiatiques, nomades pour la plupart, devenus résidents dans un des pays les plus prospères de l’Orient, tentèrent de s’adapter au prestigieux « modèle » égyptien ; beaucoup de souverains hyksos portent des noms théophores, à l’égyptienne, formés avec le nom du dieu Rê : le (ou les) roi Apopi se prénomment Âaouserrê, « Grande est la force de Rê » ‒ Nebkhepeshrê, « Rê est le seigneur de la puissance » ‒ Âakenenrê, « Grande est la vaillance de Rê » ; Apopi est aussi, à l’égyptienne encore, « le fils du corps de Rê », « la vivante image de Rê sur la terre » ; ces épithètes, dont certaines trahissent un aspect guerrier, inconnu jusqu’alors, du dieu héliopolitain, sont inscrites sur une palette que le scribe royal Ityou reçut en cadeau de son maître le roi Apopi. Elles témoignent du fait que les étrangers adoraient le dieu Rê à l’égal de Soutekh et de Baal. Que l’union idéologique se soit fait autour de la divinité solaire n’est pas pour surprendre ; au temps de Snefrou, déjà, nous l’avons vu, de prince de Byblos s’intitulait « fils de Rê des pays étrangers » ; sous des noms divers, l’astre donneur de vie était adoré dans tout l’Orient, et c’est encore le culte solaire qui, sous les Thoutmosides et les Ramessides, liera spirituellement les parts diverses de l’Empire d’Égypte. Il ne faut pas négliger non plus l’apport idéologique des Hyksos en Égypte ; les dieux asiatiques, Soutekh, Baal, Astarté qui, à l’époque des Ramsés, joueront un grand rôle dans la nouvelle pensée impériale, commencent alors à pénétrer le panthéon égyptien ‒ le dieu-lune également, adoré par les Bédouins et les nomades d’Asie : l’onomastique du début de la XVIIIᵉ dynastie en témoigne. Dans les temps anciens, il n’existait point de « frontière » spirituelle ; multiplier les dieux, c’était accroître l’efficience magique de la protection divine ; l’intolérance n’existait pas encore ». 50 61 2.5. A QUESTÃO RELIGIOSA Uma disputa pelo poder por si só já renderia um estudo interessante, mas nesse caso, não é apenas isso que está em foco. Os desentendimentos políticos entre o Norte e o Sul egípcios representam também um reflexo manifesto da rivalidade entre os deuses Seth (sob a forma asiática de Sutekh), cultuado pelo faraó hicso, e o deus Amon, muito venerado em Tebas, especialmente por Sequenenra. A civilização egípcia antiga teve, ao longo de sua história, uma religião politeísta; entretanto, existem numerosos exemplos de práticas monolátricas, tanto no âmbito das preferências régias quanto no que tange à de particulares; apesar disso, tais práticas ocorreram sem ameaçar o politeísmo básico. No que se refere ao antigo Egito, as práticas religiosas das pessoas comuns são insuficientemente conhecidas, tendo em vista que a maioria das fontes históricas relacionadas à religião egípcia que foram encontradas até o presente momento, tanto literárias quanto iconográficas, relacionam-se à religião monárquica e templária. Além disso, esse tipo de documentação é ainda mais escasso quando concerne aos períodos antecedentes ao Reino Novo (c. 1550-1069 a.C.). O fato de atualmente existir um número pouco significativo de fontes atinentes aos períodos anteriores não significa que elas tenham inexistido anteriormente, mas deve-se sim ao número ínfimo de exemplares desse tipo que sobreviveu ao passar do tempo. No entanto, ao se tratar da principal fonte trabalhada nesta pesquisa, a querela de Apepi e Sequenenra, e embora se trate de um texto literário que retrata acontecimentos do Segundo Período Intermediário (c. 1650-1550 a.C.), momento que precede o Novo Reino (c. 1550-1069 a.C.), o que mais nos interessa é a questão da religião monárquica propriamente dita e, para estudar o aspecto em questão, possuímos um número significativo de documentos. A ascensão de determinadas divindades à posição de deuses dinásticos especialmente favorecidos é um dos elementos que se destaca na contenda aqui trabalhada. Logo no início do texto observamos essa situação: no segundo parágrafo lemos que Apepi, o rei hicso, “tomou para si Sutekh como deus. Ele se recusava a servir a todos os deuses do país inteiro, exceto Sutekh”. Cabe esclarecer que Sutekh foi uma versão assumida no Delta pelo deus egípcio Seth, ao ser assimilado a uma divindade asiática, iconograficamente semelhante ao deus Baal 62 cananeu, tendo em vista que os monarcas hicsos anteriores seguiam justamente a religião cananeia. Durante a maior parte do tempo em que o Egito esteve sob dominação hicsa, a cultura seguida pelo povo dominador era idêntica à dos semitas da Palestina, sendo Apepi o único soberano hicso a de fato egipcianizar-se. Por meio de alguns documentos sabemos que o culto à Seth na região norte-oriental do Delta, onde se localizava o centro de poder dos hicsos, Avaris, era na verdade anterior ao período em que o Egito esteve sob o domínio estrangeiro. Mais tarde, no Período Raméssida, o culto a esta divindade se fortaleceu ainda mais e Seth se tornou um dos deuses dinásticos da época, o que poderia ser explicado pelo fato de Avaris, antiga capital hicsa, muito provavelmente ter sido o ponto de origem da dinastia Raméssida. Em contraposição, o faraó tebano Sequenenra tinha Amon como divindade favorita, como fica evidente no trecho “(Amon estava) com ele como protetor. Ele não se confiava a todos os deuses do país inteiro, exceto a Amon-Ra, rei dos deuses”. Tal fato é muito bem documentado na história egípcia, conhecendose a forte preferência por este deus em Tebas, durante a XVIIª dinastia e o início da XVIIIª. De acordo com Ciro Flamarion S. Cardoso, um grande número de egiptólogos percebe “na oposição Seth (...)/Amon, no plano dos deuses, uma duplicação da oposição Apepi/Sekenenra no plano dos reis: em suma, um artifício textual, literário, indicando que a luta dos reis era também um combate entre os seus deuses patronos”51. Um outro ponto, levantado por Lalouette, diz respeito às diferentes visões entre egípcios e hicsos a respeito da representação e da utilidade dos hipopótamos, tendo em vista que os primeiros costumavam praticar rituais utilizando esses animais como sacrifício, enquanto os outros os viam como um animal sagrado: “Sem dúvida, a resposta (perdida) de Sequenenra era tão inteligente quanto a do engenhoso frígio, o que seria também uma forma de garantir a supremacia de Amon-Rá sobre Sutekh. Porque este texto é igualmente um revelador do estado político do momento. De um lado, Amon-Rá já aparece como o grande deus. Por outro lado, esta CARDOSO, Ciro Flamarion. “As práticas religiosas individuais no antigo Egito durante o terceiro milênio a.C. e a primeira metade do segundo: Um programa de pesquisa” in LIMA, Lana Lage da Gama & HONORATO, Cezar Teixeira & CIRIBELLI, Marilda Corrêa & SILVA, Francisco Carlos Teixeira da (Orgs.). História & Religião. Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2002. p.185. 51 63 “lagoa de hipopótamos” apresenta aqui um duplo sentido, mítico e político; os tebanos praticavam sem dúvidas o rito antigo de arpoar hipopótamos em uma lagoa na cidade, rito sagrado destinado a proteger a monarquia egípcia, o animal era considerado como um ‘receptáculo’ de elementos do mal; mas isso era também, para os hicsos, um sacrilégio: o deus Sutekh assimilado à Seth podia se encarnar no hipopótamo, um de seus animais sagrados.”52 Mas antes de seguir adiante nos pressupostos, faz-se necessário explicitar alguns conceitos referentes à questão religiosa. Um assunto muito discutido atualmente diz respeito à oposição tradicional e simplista entre os significados de monoteísmo e politeísmo, sendo esta um tanto inadequada, por existirem situações intermediárias. No caso do Egito Antigo, que é o que interessa neste trabalho, a “dialética do uno e do múltiplo se estabelecia, no tocante ao divino, mediante mecanismos de diversos tipos: monolatria, henoteísmo, sincretismo e conjunção de divindades”53. Dando início às conceitualizações, serão aqui apontados primeiramente aqueles termos mais simples e populares. Como é de conhecimento geral, politeísmo é a crença em mais de um deus, como também o seu culto. Em contraposição, monoteísmo é a crença em uma única divindade, exclusivamente cultuada, desconsiderando a existência de qualquer outra. Embora se saiba não existir nenhum tipo de diferenciação hierárquica entre os dois vocábulos, em “ambientes culturais marcados pelas grandes religiões monoteístas da atualidade, como o cristianismo e o islamismo, ‘politeísmo’ muitas vezes (...) é um termo pejorativo, carregado de preconceitos derivados de acreditar-se numa superioridade inerente, intrínseca, do monoteísmo, frequentemente deixada sem explicar. Assim, o que à primeira vista parece uma simples classificação binária logo pode ser transformada numa hierarquia”54. LALOUETTE, op. cit. p.115-116. « Sans doute la réponse (perdue) de Seqenenrê fut-elle aussi habile que celle de l’ingénieux Phrygien, ce qui était une manière aussi d’assurer la suprématie d’Amon-Rê sur Soutekh. Car ce texte est également révélateur de l’état politique du moment. D’une part, Amon-Rê apparaît comme le grand dieu, déjà. D’autre part, cet « étang des hippopotames » a ici une double valeur, mythique et politique ; les Thébains pratiquaient sans doute le rite ancien du harponnage des hippopotames dans un étang de la ville, rite sacré destiné à protéger la monarchie égyptienne, l’animal étant consideré comme le « réceptacle » d’élements malfaisants ; mais c’était aussi, por les Hyksos, un sacrilège : leur dieu Soutekh assimilé à Seth pouvant s’incarner dans l’hippopotame, l’un de ses animaux sacrés. » 53 CARDOSO, Ciro Flamarion. “O Politeísmo dos Antigos Egípcios Sob o Reino Novo (1530-1069 a.C.)” in LIMA, Alexandre Carneiro Cerqueira & TACLA, Adriene Baron (Orgs.). Cadernos do CEIA: Experiências Politeístas. No. 1. Niterói, 2008, p. 63. 54 Ibidem. p.65. 52 64 No que diz respeito à Antiguidade é importante levar em consideração que não existiam expressões equivalentes a “monoteísmo” e “politeísmo”, tendo em vista que estes são termos eruditos elaborados muito mais recentemente. Isso se deve especialmente ao fato das religiões politeístas serem anteriores às monoteístas e, se cada um dos termos só adquire significado mediante à existência do outro, por ser este um sistema de classificação binário, antes da criação do monoteísmo, o politeísmo não se autoanalisava nem se percebia como tal. Embora normalmente sejam deixadas em segundo plano, as quatro situações intermediárias citadas anteriormente – a monolatria, o henoteísmo, o sincretismo e a conjunção de divindades – faziam-se presentes e são essenciais para compreendermos alguns aspectos da religião egípcia antiga. A monolatria consiste na adoração de um só ser divino, sem excluir, contrariamente ao monoteísmo, a existência de outra(s) divindade(s). Ocorre geralmente dentro do politeísmo, quando determinada pessoa ou segmento religioso se concentra em um único deus, embora admitindo a existência de outros. Já o henoteísmo, “consiste numa assimilação ou síntese de diversos deuses em favor de um deles”55, fundamentando-se na ideia de supremacia e hegemonia de um deus em relação aos demais, podendo haver um deus supremo e outros deuses menores. Eventualmente, estes últimos podem parecer como partes do ser da divindade maior (seu corpo, sua língua, etc.). Esse conceito aproxima-se ao de monolatria em alguns pontos, pois é comum incidir na crença em um único ser divino, mesmo admitindo a existência de outros deuses. Termos que algumas vezes aparecem como equivalentes a essa ideia são o monoteísmo inclusivo e o politeísmo monárquico. Nesse caso, certa divindade pode ser relacionada a uma personificação de um deus supremo ou se pode atribuir a ela o poder de assumir personalidades múltiplas. O sincretismo, por sua vez, é tido como um princípio filosófico ou religioso que tem como tendência fundir múltiplas doutrinas diferentes em uma só, formando uma espécie de amálgama de concepções heterogêneas. Na história das religiões, o sincretismo seria uma fusão de concepções religiosas distintas, ou a influência exercida por uma determinada religião nas práticas de outra. De acordo com Ciro Flamarion S. Cardoso, no caso egípcio, essa palavra é utilizada pelos egiptólogos 55 Ibidem. p. 66. 65 com uma conotação diferente da habitual, tendo em vista que não é decorrente de relações entre sociedades distintas, “mas sim, ao fato de uma divindade egípcia poder agregar outra (ou duas outras) a si mesma como uma espécie de epíteto” 56. Um dos exemplos egípcios de sincretismo mais conhecidos é o caso de Amon-Rá, que, inclusive, encontra-se presente em nossa fonte. E, por fim, a conjunção de divindades, cuja ocorrência é menor, mas também presente na história da religião egípcia. Essa conjunção divina seria um acontecimento passageiro e ocorreria quando dois deuses, ao se unirem sob uma forma única, transformavam-se momentaneamente numa espécie de superdivindade. Como dito anteriormente e corroborado pela própria fonte, a monolatria é o caso que se destaca e faz o diferencial para esta pesquisa. O conto de Apepi e Sequenenra apresenta claramente a monolatria em duas esferas distintas, o contexto do faraó hicso e o do faraó tebano, tendo em vista que Apepi praticava uma espécie de culto monolátrico à Sutekh, enquanto Sequenenra aparece fazendo o mesmo em relação ao deus sincrético Amon-Rá. Em relação ao faraó Apepi, isso fica bastante claro entre a oitava e a décima quarta linhas do conto, ao mencionar que “o rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) tomou para si Sutekh como deus. Ele se recusava a servir a todos os deuses do país inteiro, exceto Sutekh. Ele (lhe) construiu um templo, um trabalho perfeito (para a) eternidade, ao lado da casa do rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!). E ele aparecia em glória, cedo pela manhã, para fazer oferenda (...) diariamente a Sutekh, (enquanto) os dignitários do palácio (vida, prosperidade, saúde para ele!) portavam guirlandas, como aquilo que é feito no templo de PraHarakhty, muito exatamente”. Tal fato demonstra não apenas uma predileção da parte do soberano hicso por um determinado deus, mas, de certo modo, sua egipcianização, tendo em vista que ele não só cultuava aquela divindade, como construiu um templo para Sutekh e cumpria com todos os seus rituais religiosos diariamente. Já a respeito de Sequenenra, temos uma referência um pouco mais sutil, porém não menos importante, referente à monolatria do rei egípcio, quando é citado 56 Ibidem. p. 66. 66 que “o Príncipe da Cidade do Sul (...) um decreto (...) (Amon estava) com ele como protetor. Ele não se confiava a todos os deuses do país inteiro, exceto a Amon-Rá, rei dos deuses”, o que deixaria claro seu culto exclusivo e seu favoritismo àquela divindade. No trecho “E ele aparecia em glória, cedo pela manhã, para fazer oferenda (...) diariamente a Sutekh, (enquanto) os dignitários do palácio (vida, prosperidade, saúde para ele!) portavam guirlandas, como aquilo que é feito no templo de Ra-Harakhty, muito exatamente”57 fica em evidência a forma como era prestado o culto a Sutekh, por Apepi. O fato de o faraó venerar essa forma “asiatizada” do deus egípcio Seth, seguindo as características de adoração pertencenter ao culto solar, constituiria uma espécie de desvio dentro da religião hicsa, por prescrever elementos do sistema canônico egipcio. É possível, também, que se visse com desagrado a transferência de elementos do culto solar para o de Seth/Sutekh. Não seria este mais um modo do autor do conto levantar uma crítica a Apepi? Essa hipótese relacionada à questão religiosa que o texto abrange também deve ser levada em consideração, sobretudo tendo em vista que apenas o culto a Sutekh é descrito no texto, o que não ocorre quando é mencionado o culto a Amon, já que provavelmente o funcionamento deste segundo já estivesse subentendido para os egípcios. Será que as cerimônias referentes à adoração de Amon eram tão presentes na mentalidade cotidiana egípcia que dispensariam comentários? É difícil responder ao certo, pois ambas as opções seriam viáveis observando-se e seguindo-se o padrão de escrita apresentado na contenda. Em contraposição, faz-se imprescindível destacar que no texto não há elemento algum que se refira à religião de todo o restante do povo egípcio, que de acordo com o contexto histórico da época permanecera seguindo suas características politeístas preexistentes. A fonte, portanto, refere-se apenas ao culto religioso régio e tal prática monolátrica faraônica não interferia no politeísmo básico daquela civilização como um todo. CARDOSO, Ciro Flamarion S. Apepi e Seqenenra (Papiro Sallier I: BM nº 10.185). Tradução e transliteração inéditas cedidas gentilmente pelo autor. Nitéroi, 2011. 57 67 CAPÍTULO III Analisando a Contenda de Apepi e Sequenenra Antes de partirmos para a análise textual, reapresentaremos a seguir a tradução para o português da Contenda de Apepi e Sequenenra, feita por Ciro Flamarion S. Cardoso, mas dessa vez numerada linha a linha para facilitar a discussão posterior, sendo esta demarcação utilizada como base ao longo de todo o capítulo. A fonte em hieróglifos, sua transcrição fonética e a análise semântica, feitas pelo tradutor do texto, encontram-se em anexo, no final deste trabalho. A CONTENDA DE APEPI E SEQUENENRA (PAPIRO SALLIER I: BM NO 10.185)58 1. Acontecia, pois, (que) a terra do Egito (estava) na aflição, (já que) não 2. havia um Senhor (vida, prosperidade, saúde para ele!) como rei da(quela) 3. época. Acontecia, então, (que) o rei Sequenenra (vida, prosperidade, saúde 4. para ele!) era governante (vida, prosperidade, saúde para ele!) da Cidade do 5. Sul (Tebas). (Mas havia) aflição na cidade dos asiáticos, (pois) o Príncipe 6. Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) (estava) em Avaris. Entrementes, 7. o país inteiro provia-lhe (contribuições), submetido a seus tributos; o Norte, 8. igualmente, tributava(-lhe) todos os bons produtos do Delta. 9. Então, o rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) tomou para si 10. Sutekh como deus. Ele se recusava a servir a todos os deuses do país inteiro, 11. exceto Sutekh. Ele (lhe) construiu um templo, um trabalho perfeito (para a) 12. eternidade, ao lado da casa do rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!). 13. E ele aparecia em glória, cedo pela manhã, para fazer oferenda (...) 14. diariamente a Sutekh, (enquanto) os dignitários do palácio (vida, prosperidade, 15. saúde para ele!) portavam guirlandas, como aquilo que é feito no templo de 16. Pra-Harakhty, muito exatamente. 17. 58 Então, quanto ao rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!), ele Tradução de Ciro Flamarion S. Cardoso. 68 18. desejava enviar uma mensagem agressiva ao rei Sequenenra (vida, 19. prosperidade, saúde para ele!), o Príncipe da Cidade do Sul. Então, após 20. muitos dias (se passarem) depois disso, o rei Apepi (vida, prosperidade, saúde 21. para ele!) fez com que se convocasse os dignitários do seu (palácio?) (e 22. propôs-lhes fazer) enviar uma mensagem (...), uma reclamação oral (...) (...) 23. (relativa ao) rio, (...) os escribas, os sábios (...)(e) os dignitários maiores (...) 24. (Eles disseram:) “..., (ó) soberano (vida, prosperidade, saúde para ele!), nosso 25. Senhor! (...)‘(...) o pântano de hipopótamos que está a leste da Cidade do Sul, 26. (pois) eles não deixam vir-nos o sono, de dia (nem) de noite, (já que) o (seu) 27. ruído (está) no ouvido (dos de) nossa cidade’ ”. (...) 28. Então o Príncipe da Cidade do Sul (...) um decreto (...) (Amon estava) 29. com ele como protetor. Ele não se confiava a todos os deuses do país inteiro, 30. exceto a Amon-Ra, rei dos deuses. Então, após (se passarem) vários dias 31. depois disso, o rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) enviou (uma 32. mensagem) ao Príncipe da Cidade do Sul, a respeito da reclamação oral que 33. lhe haviam sugerido os seus escribas e sábios. Então, (quando) o mensageiro 34. do rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) chegou até o Príncipe da 35. Cidade do Sul, levou-se-o à presença do Príncipe da Cidade do Sul. 36. Então, Sequenenra disse ao mensageiro do rei Apepi (vida, 37. prosperidade, saúde para ele!): “Para que foste enviado à Cidade do Sul? Por 38. que me abordas nestas viagens?” O mensageiro então lhe respondeu: “Foi o 39. rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) que te enviou (uma mensagem), 40. dizendo: ‘Faze com que seja abandonado o pântano de hipopótamos que 41. (está) a leste da Cidade do Sul, já que eles não deixam vir-me o sono, de dia 42. (nem) de noite. O barulho (deles) está no ouvido (dos de) sua cidade’.” Então o 43. Príncipe da Cidade do Sul ficou estupefato por um longo momento: acontecia44. lhe não saber replicar ao mensageiro do rei Apepi (vida, prosperidade, saúde 45. para ele!). Então o Príncipe da Cidade do Sul lhe disse: “Assim, foi o que o teu 46. Senhor (vida, prosperidade, saúde para ele!) ouviu falar a respeito do pântano 47. que (está) a leste da Cidade do Sul, nesses termos?” Então o mensageiro lhe 48. disse: “(Pensa sobre) os assuntos a respeito dos quais ele me enviou.” 49. Então o Príncipe da Cidade do Sul fez com que cuidassem do 50. mensageiro do rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) com todas as 69 51. coisas boas: carne, bolos (...). (...) “‘Quanto a tudo aquilo que tu me disseres, 52. eu o farei’− assim tu lhe dirás.” (...) Então o mensageiro do rei Apepi (vida, 53. prosperidade, saúde para ele!) pôs-se a viajar em direção ao lugar onde estava 54. o seu Senhor (vida, prosperidade, saúde para ele!). 55. Então o Príncipe da Cidade do Sul fez com que fossem convocados os 56. Seus dignitários mais graduados, assim como todos os oficiais principais a seu 57. serviço. Ele repetiu-lhes todas as reclamações orais a respeito das quais lhe 58. enviara (uma mensagem) o rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!). 59. Eles se calaram unanimemente por um longo momento e não souberam 60. responder-lhe, bem ou mal. 61. 62. Então, o rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) enviou (uma mensagem) a (...) 70 3.1. ANOTAÇÕES AO TEXTO Linhas 1-2: Logo no início da contenda faz-se referência à aflição do Egito causada pelo fato dele estar sob domínio estrangeiro, o que contrariaria a ordem natural político-religiosa daquela civilização, prejudicando o equilíbrio (Maat) das Duas Terras. Ao falar que “não havia um Senhor”, o texto faz justamente referência à desordem política sofrida pelo Egito naquele momento. Mais adiante faremos uma discussão a respeito das nomenclaturas utilizadas no texto para se referir aos dois soberanos do período, Apepi e Sequenenra. Linha 2: Aparece pela primeira vez no conto a saudação ritual “vida, prosperidade, saúde para ele!”, comumente utilizada em textos egípcios ao referir-se ao faraó, não apenas ao citar o nome do soberano, quanto também ao utilizar qualquer nomenclatura que a ele se refira (“Senhor”, “governante” etc.). Nessa parte remanescente do texto, a saudação “vida, prosperidade, saúde para ele!” se repete por pelo menos 22 vezes, reforçando justamente o seu caráter ritual. Linhas 3-4: O texto refere-se à Sequenenra como governante, não de todo o Egito, mas ressaltando que seu domínio se estendia apenas sobre a “Cidade do Sul”. Linha 4: O texto original faz referência à “Cidade do Sul”, sem determinar exatamente que cidade seria essa. Historicamente falando sabemos que a “Cidade do Sul” seria Tebas, centro de poder da parte do território controlada pelo soberano egípcio Sequenenra. Linhas 4-5: A “cidade dos asiáticos” a qual se refere o texto seria Avaris (atual Tell-el-d’aba), situada no Baixo Egito, na região do Delta. Durante todo o período de dominação hicsa sobre o Egito, ela foi o centro de poder e capital dos estrangeiros. Linhas 4-5: Observe que novamente a contenda faz referência à aflição do povo egípcio controlado pelos estrangeiros, evidenciando a posição contrária à autoridade hicsa e deixando nítido que o texto foi escrito por egípcios que não aceitavam aquela dominação. 71 Linha 5: Note-se que nesta linha Apepi é descrito como Príncipe e que, embora referindo-se ao soberano estrangeiro, a saudação ritual “vida, prosperidade, saúde para ele!” não deixa de ser utilizada. Linhas 6-7: Ao falar que o país inteiro provia tributos à Apepi, deixa clara a submissão de todo o povo egípcio ao soberano hicso, inclusive aqueles que viviam na parte Norte do país, onde se situava a capital do domínio estrangeiro. Linha 8: Sutekh é a forma que o deus Set egípcio, assimilado a uma divindade asiática, assumiu no Delta durante o domínio hicso. Linhas 9-10: Ao mencionar que Apepi “se recusava a servir a todos os deuses do país inteiro, exceto Sutekh”, fica evidenciado o caráter monolátrico que o culto do rei por aquele deus assumiu, tendo em vista que existia a consciência e a aceitação de um culto a vários deuses, mas o hicso só aceitava cultuar aquela divindade especificamente. Ao mostrar que Apepi mandou erguer um templo em honra à Sutekh bem ao lado do palácio real, fica ainda mais em evidência o respeito e a crença do rei ao deus. Linhas 11-16: Mostra que o rei Apepi levava tão a sério a crença em Sutekh que ele próprio, com o auxílio de seus funcionários reais, prestava diariamente o culto ao deus, oferecendo-lhe oferendas. Outro elemento que fica em evidência neste trecho, diz respeito à maneira como era feito o culto à Sutekh, assemelhando-se ao culto solar de Pra-Harakhty. Linhas 17-21: Estas linhas nos mostram o claro desejo de Apepi encontrar alguma forma para afrontar Sequenenra sem, no entanto, ficar claro o porquê. Linhas 22-24: Tendo em vista que a cidade de Avaris, situada no Baixo Egito, ficava a centenas de quilômetros de distância de Tebas, situada no Alto Egito, a reclamação de que o ruído emitido pelos hipopótamos tebanos impediria os habitantes do Delta de dormir seria completamente irreal. No entanto, alguns elementos presentes anteriormente no texto (entre as linhas 15 e 20, mais especificamente), demonstram que 72 Apepi procurava um motivo para se queixar com o soberano egípcio Sequenenra. A história dos hipopótamos, portanto, seria apenas uma desculpa para esconder problemas previamente existentes entre os dois reis. Linhas 24-27: Nessa parte fica evidenciada a monolatria de Sequenenra por Amon-Ra, que mesmo aceitando a existência de todos os deuses egípcios, só dizia confiar nesta divindade. Do mesmo modo que anteriormente aparece no texto o caráter monolátrico de Apepi por Sutekh, podemos dizer que o culto de Sequenenra por AmonRa surgiria textualmente como uma forma de reforçar a oposição e as diferenças entre os dois reis. Linhas 28-30: Neste trecho é evidenciada uma das principais questões analisadas nesta pesquisa: a monolatria por parte de Sequenenra a Amon-Ra. Linhas 30-35: Utilizando-se da sugestão de seus conselheiros, Apepi finalmente envia uma mensagem para Sequenenra. Linhas 36-39: A reclamação de Apepi era tão absurda que deixou Sequenenra estupefato, pegando-o desprevenido, sem saber o que fazer e como responder ao hicso, já que o motivo da reivindicação era completamente incoerente. Linhas 40-43: Momento em que o mensageiro hicso transmite a queixa de Apepi à Sequenenra. Linhas 44-45: O modo acolhedor com que o mensageiro de Apepi foi recebido por Sequenenra demonstraria uma atitude de respeito do rei egípcio para com o hicso. Linhas 46-48: Apesar da queixa de Apepi ser absurda, Sequenenra aceita a reclamação e promete cumprir o que lhe foi solicitado, aparentando certa submissão diante do estrangeiro. 73 Linhas 49-53: Após despachar o mensageiro de Apepi, Sequenenra convoca seus conselheiros e altos funcionários para falar da reclamação enviada pelo estrangeiro. Assim como o rei, nenhum deles soube como responder diante da queixa absurda. Linhas 53-54: O texto incompleto é interrompido justamente no momento em que história retorna para Avaris, dando a entender que Apepi enviaria outra mensagem para Sequenenra, deixando-nos sem saber qual seria o desfecho da contenda. 74 3.2. ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS Para a análise histórico-literária do conto aqui trabalhado foram utilizadas as seguintes tendências teórico-metodológicos: a Sociologia Estruturalista Genética da Literatura elaborada por Lucien Goldmann, fundamentada em ideias de Georg Lukács; e a Poética Estruturalista, de Tzvetan Todorov. De acordo com Cardoso, “é útil associar os métodos de Goldmann e Todorov, aplicando-os aos mesmos objetos textuais em pesquisas históricas. O que proponho é, de fato, pôr a poética todoroviana ancilarmente ao serviço do enfoque de Goldmann. Isto porque este último é mais útil ao historiador como eixo de pesquisa, segundo creio, mas insuficientemente específico no que tange às formas de empreender, na prática, a apreensão das estruturas imanentes ou intrínsecas dos textos literários, tarefa que os procedimentos técnicos de Todorov permitem realizar com precisão bem maior.”59 A fim de analisar a estrutura do texto, além dos elementos teóricos citados acima, complementarmente utilizamos o método da leitura isotópica de Algirdas Julien Greimas e, assim, através da representação por meio de quadrados semióticos, concluimos com a apresentação dos resultados obtidos em nossa análise. 3.2.1. A Metodologia de Lucien Goldmann: A Sociologia Genética Lucien Goldmann parte do pressuposto de que nas ciências humanas a identidade do sujeito estaria inter-relacionada ao seu objeto de conhecimento, tendo em vista que os valores humanos individuais se inseririam na estrutura do pensamento teórico e, ao contrário do que ocorre nas ciências naturais que são muito mais objetivas, não seria possível separar por completo o produtor de seu produto. Ao exercer influência sobre aquilo que é produzido, o comportamente humano interferiria diretamente em toda a sua produção e, embora isso nem sempre seja notório, caberia aos pesquisadores de humanidades a análise e a colocação dessas ocorrências em evidência. 59 CARDOSO, Ciro F. Narrativa, Sentido, História. Campinas: Papirus, 1997, p. 27. 75 O método de Goldmann, segundo Cardoso60, é fundamentado em cinco premissas básicas: (1) a relação social e a criação literária relacionam-se com as estruturas mentais, que organizam a consciência do escritor e o universo por ele criado, e não com a realidade humana; (2) as estruturas mentais, ou estruturas categoriais significativas, não são fenômenos individuais, mas sim sociais, pois os sujeitos possuem além de uma natureza individual uma natureza coletiva, já que ao viverem longo tempo em grupos são influenciados pelas experiências e problemas de sua classe social; (3) as estruturas da consciência de classe e do universo fantasioso da obra literária são, em sua maioria, de homologia estrutural, podendo até mesmo possuir uma ligação mais frouxa. Já os conteúdos concernentes facultam ser diferentes ou inclusive opostos, visto que a homologia postulada se relaciona à estrutura, não ao conteúdo; (4) as estruturas mentais são um dos elementos mais importantes da obra literária, por serem elas as responsáveis pela unidade do texto, atribuindo-lhe qualidade estética e literária; (5) as estruturas mentais que atravessam o universo ficcional inventado pelo autor não são conscientes, portanto, para que possam ser alcançadas é necessária uma pesquisa estrutural e sociológica, e não apenas um estudo literário inerente e limitado exclusivamente à própria obra e nem um estudo das intenções do próprio escritor, sejam elas conscientes ou inconscientes. São dois os princípios basilares do método de Goldmann: compreensão e explicação. “A compreensão consiste na descoberta de uma estrutura significativa imanente à obra em estudo. A explicação é a inserção de tal estrutura, como elemento constitutivo e funcional, numa estrutura maior, imediatamente englobante (a da consciência de classe), que no entanto o pesquisador só precisa explorar na medida necessária para tornar inteligível a gênese da obra analisada. Assim, toda a pesquisa se situa em dois níveis: o do objeto de estudo e o da estrutura englobante, oscilando entre ambos o tempo todo”61. 60 61 Ibidem. p. 27-29. Ibidem. p. 29. 76 3.2.2. A Metodologia de Tzvetan Todorov: A Poética Estruturalista Teoricamente falando, a poética é o estudo das obras literárias, tendo como objetivo caracterizá-las a partir da criação de conceitos generalizantes que possam servir como base para a compreensão da constituição das várias obras. A metodologia poética oscilaria constantemente entre os gêneros textuais e os textos especificamente, entre a generalização e a descrição dos elementos presentes em cada documento. Em resumo, o estabelecimento dessas leis generalizantes basearse-ia em dois princípios metodológicos: “a abstração (desejo de generalizar) e a imanência (as leis são procuradas no interior da própria literatura)”62. A poética funcionaria, portanto, como uma espécie de ciência da literatura. Nesta pesquisa nos centraremos na poética estruturalista de Todorov, que se trata especificamente de uma poética da prosa narrativa. Seguindo a poética estruturalista, a análise de textos é fundamentada na distinção de três aspectos presentes nas obras literárias: (1) o verbal, que se refere aos registros da fala, ao modo, ao tempo, à visão e à voz; (2) o sintático, pertinente às relações que as diferentes partes do texto mantêm entre si e que, através de sua análise, nos permitem perceber a estrutura textual; e (3) o semântico, que diz respeito às ações relativas ao discurso como sistema. Embora concordasse com a existência dessas três categorias, Todorov defendia que nem sempre é necessário aplicar todas elas a todos os objetos de análise, podendo-se deixar de lado alguma delas em certos momentos ou, ainda, dar maior ênfase a uma ou outra quando fosse conveniente. 1) O Aspecto Verbal Como dito anteriormente, o aspecto verbal se refere aos registros da fala, ao modo, ao tempo, à visão e à voz. Ao remeter-se a essa categoria, a poética de Todorov recorre a oposições binárias que se complementam. De acordo com Cardoso, 62 Ibidem. p. 37. 77 “Em cada caso desses, a definição não depende da presença ou da ausência absoluta de um dos lados da categoria que se opõem, decorre é da constatação do predomínio de um dos lados. E o predomínio pode ser quantitativo – expressando-se numa ocorrência frequente – ou qualitativo, quando a ocorrência não é majoritária, mas se dá em momentos privilegiados do texto”63. Ao nos referirmos aos registros da fala, surgem pelo menos quatro oposições diferentes: a entre frases concretas e abstratas; a presença ou não de figuras retóricas; a presença ou ausência de alusão a discursos anteriores; e a oposição entre subjetividade e objetividade da linguagem. As frases concretas seriam aquelas cujo teor se remete a algo único, singular, material e sem continuidade. Já as abstratas são aquelas que expressam uma certa “verdade” situada fora do espaço e do tempo. A presença ou ausência de figuras retóricas na fala define o quanto figurado é o discurso. A não existência de figuras de linguagem geraria uma linguagem transparente, mas este seria um caso extremo, utilizado basicamente em discursos utilitários. Conforme aponta Ciro Flamarion S. Cardoso: “A figura é uma disposição particular de palavras percebida pelas relações entre elas. Essas relações podem ser: 1) de identidade (a figura se chama, então, repetição); 2) de oposição (a figura é a antítese); 3) de quantidade mais ou menos grande (figura chamada gradação)”64. No que se refere à existência ou não de alusões a discursos anteriores, podemos diferenciar o discurso monovalente do polivalente. O primeiro evocaria somente a si mesmo, sendo algo incomum, portanto, um caso-limite. Já o segundo, faria referência implícita ou explicitamente a outros discursos e/ou textos. Devemos ter em mente que a polivalência, em sua grande maioria, não deve ser considerada como plágio nem nada parecido, tendo em vista que toda obra literária recebe naturalmente influências de outros escritos, pois nenhum autor consegue se desvincular por completo do mundo em que vive enquanto escreve. 63 64 Ibidem. p. 38. Ibidem. p. 38. 78 Quanto à objetividade e à subjetividade da linguagem, distinguimos uma da outra definindo o discurso objetivo como aquele em que existem poucos traços do sujeito da enunciação, enquanto o discurso subjetivo é aquele em que podemos perceber a influência de elementos da formação e da individualidade do autor, através da presença de vestígios que porventura façam referência às suas crenças e valores culturais. Passemos agora para o segundo aspecto verbal, o modo, sobre o qual Ciro Flamarion Cardoso resumiu muito bem ao definí-lo como “o grau de presença dos acontecimentos que o texto evoca. Em outras palavras, o modo de um discurso é o grau de exatidão com que evoca o seu referente (sendo mínimo este grau quando se trata do relato de fatos não-verbais). No caso de relatos de fatos verbais, há três possibilidades: 1) estilo direto, quando o discurso é reproduzido ou citado sem cortes ou mudanças; 2) estilo indireto, ao ser o discurso transposto, conservando-se porém o conteúdo da fala, inserida gramaticalmente no discurso do narrador e quase sempre resumida; 3) discurso narrado ou contado, que ocorre quando o que é dado no texto é meramente o conteúdo do fato verbal, sem conservar elementos da fala propriamente dita”65. A terceira categoria, o tempo, surge a partir de duas diferentes linhas temporais: a do discurso e a do universo fictício por ele criado. Enquanto o discurso apresenta uma temporalidade unidimensional, a da ficção é plural, não existindo, portanto, um paralelo completo entre elas. Neste grupo são incluídas questões referentes à ordem em que os fatos aparecem no texto, notadamente as inversões (anacronias) entre o “antes” e o “depois” e que podem ser de dois tipos: retrospecções e prospecções; à duração de cada ação, referindo-se à comparação entre o tempo que deveria durar uma ação e o tempo que se gasta para ler o discurso que ela evoca; e à frequência com que um determinado acontecimento é evocado no texto, podendo seguir uma das três diferentes linhas discursivas: o discurso singulativo (um único discurso evocando um único acontecimento), o repetitivo (várias passagens do texto se referindo a um único acontecimento) ou o iterativo (um único discurso evocando vários acontecimentos semelhantes). 65 Ibidem. p. 39. 79 A visão, quarta categoria, “designa o ponto de vista – tal como se apresenta no interior da obra – do qual observamos o objeto do discurso, bem como a qualidade da observação (verdadeira ou falsa; parcial ou completa)”66. Em primeiro lugar, o aspecto da visão depende das informações sobre aquilo que se percebe (conhecimento objetivo) e a respeito de quem percebe (conhecimento subjetivo). Quando um relato não parte da subjetividade de um narrador ou de um personagem, ele é objetivo. Em segundo lugar, o grau de conhecimento varia de acordo com sua extensão (ângulo) e sua profundidade (penetração). No que diz respeito à extensão, existe a visão interna (quando juntamente aos fatos aparece a interpretação deles feita por algum personagem) e a visão externa (quando os fatos aparecem sem, no entanto, haver qualquer elemento explicativo para eles). É necessário advertir que tanto o ângulo quanto a penetração podem variar dentro de diferentes partes de um mesmo relato. Já no que diz respeito à profundidade, esta tem a ver com a presença ou a ausência de motivações inconscientes das personagens no texto. Além desses dados, existem ainda questões referentes à existência ou não de elementos acerca do universo imaginário da ficção, cujas informações podem ser verdadeiras ou falsas no texto e, muitas vezes, são omitidas a fim de se manter o suspense. Por último, outro elemento comum, que pode ou não estar presente em um texto, diz respeito à existência de uma avaliação moral dos fatos descritos, podendo aparecer explícita ou implicitamente nas informações presentes na história. E, por fim, a voz. Esta categoria diz respeito basicamente à relação do narrador com o discurso e o universo ficcional, em que ele seria o “agente do processo de construção textual e ficcional: (pois) revela ou dissimula os pensamentos das personagens, emite ou não juízos de valor, escolhe entre as diversas dimensões cronológicas, entre discurso direto ou transposto etc.”67. Existem diferentes tipos de narrador, sendo dois dos mais comuns o narrador implícito e o narrador personagem. Outro elemento importante em um texto e que não podemos deixar de citar é o narratário, que é aquele a que o discurso se dirige. 66 67 Ibidem. p. 40. Ibidem. p. 41.. 80 2) O Aspecto Sintático O aspecto sintático está voltado para as relações mantidas entre as diferentes partes de uma obra escrita e, por meio de sua análise, é possível perceber as estruturas que compõem o texto. Ao privilegiar os textos narrativos, Todorov dá preferência a textos em que as ordens lógica e temporal são predominantes, em detrimento daqueles cuja ordem espacial fica em evidência. Ao falarmos da ordem lógica e temporal, nos referimos àqueles textos no qual a relação entre os acontecimentos é de causalidade, o que apresenta grande ligação com a temporalidade, já que fica aparente que um determinado fato foi causado pelo seu antecessor. Quando nos remetemos à ordem espacial, embora muito mais presente em escritos poéticos do que em prosas por depender “de uma disposição mais ou menos regular das unidades do texto, criando a sensação de espacialidade”68, é certo que ela também pode aparecer em textos narrativos, especialmente sob a forma de figuras de linguagem – como gradações, antíteses,... –, através de oposições ou palalelismos etc. Ainda acerca da ordem temporal, faz-se necessário comentar que muitas vezes a temporalidade do enunciado aparece duplicada pela temporalidade da enunciação, tendo em vista que nem sempre o tempo em que o texto foi escrito é o mesmo tempo daquilo que é representado pelo autor. Isso ocorre, por exemplo, na própria Contenda de Apepi e Sequenenra, pois, como sabemos, embora ela tenha sido escrita – ou copiada – durante o período do Reino Novo (c. 1550-1069 a.C.), ela retrata acontecimentos ocorridos durante o Segundo Período Intermediário (c. 16501550 a.C.). Os relatos de uma narrativa podem ser de dois tipos básicos: relato mitológico ou relato ideológico. O relato mitológico é aquele em que as unidades de causalidade possuem relação direta umas com as outras; já os relatos ideológicos são aqueles em que os componentes do texto refletem alguma lei ou ideia geral – na maioria das vezes, leis de caráter ético ou moral. Todorov interessava-se apenas pelos relatos mitológicos. A sintaxe narrativa dos relatos mitológicos de Todorov baseava-se no trabalho de Vladimir Propp – estruturalista russo especialista na análise de contos –, 68 Ibidem. p. 42. 81 derivando de maneira mais simplificada da morfologia de exame textual deste. Todorov propôs uma análise a partir de três unidades narrativas, cada uma delas consecutivamente maior do que a outra: proposição narrativa, sequência e texto. Enquanto o texto é um fenômeno empírico, as duas outras unidades possuem recortes analíticos. A menor unidade do relato é a proposição narrativa. Ela possui dois elementos: os actantes e os predicados. Enquanto os actantes funcionariam como uma espécie de sujeito ou objeto do texto, os predicados podem ser adjetivais ou verbais. Os predicados adjetivais são aqueles que não mudam o estado dos elementos que são apresentados anteriormente no relato; já os verbais têm o efeito contrário, portanto, causam mudanças. De acordo com o tipo de predicado existente, as proposições narrativas podem ser divididas entre atributivas (aquelas que são estáticas) e verbais (aquelas que são dinâmicas). Sequências são as unidades narrativas que comportam as proposições. Todo texto possui normalmente mais de uma sequência, cada uma delas dividida em cinco partes que podem conter uma ou mais proposições narrativas, denominadas funções. Existem ainda proposições livres – também chamadas de indícios –, que embora não caibam no esquema básico na sequência, não deixam de ser de grande importância. Nem sempre todas as sequências aparecem representadas no texto, sendo comum a ocorrência de elipses de proposições narrativas. Segue abaixo a estruturação da sequência: 1) Situação inicial. 2) Perturbação da situação inicial. 3) Desequilíbrio ou crise. 4) Intervenção na crise. 5) Novo equilíbrio (às vezes semelhante à situação inicial). A sequência é, por conseguinte, estruturada sobre processos de desequilibração e reequilibração que modificam circunstâncias, intercalando momentos estáticos com momentos dinâmicos. 82 As relações entre as sequências são os elementos que compõem um texto narrativo. Acerca da metodologia de Todorov, Ciro Flamarion S. Cardoso afirma que essas relações se dão de três modos possíveis: “1) encadeamento, quando as sequências se sucedem, seguindo-se cada uma à anterior, linearmente; 2) imbricação ou inserção, caso em que uma sequência aparece dentro de outra, na qual cumpre a função de proposição narrativa sem deixar, por isso, de ser uma sequência em si e por si igualmente; 3) alternância ou entrelaçamento: alternam-se proposições de duas ou mais sequências (...)”69 Por fim, a última consideração de Todorov acerca do aspecto sintático das narrativas diz respeito ao conjunto formado pelas ações primárias e suas reações – também chamadas de ações secundárias. As ações primárias são aquelas que não dependem de nenhuma outra para existir, enquanto as secundárias são as que dependem de ações anteriores. 3) O Aspecto Semântico “Enquanto a sintática se ocupa só de relações in praesentia, relações sintagmáticas, imediatas, entre elementos co-presentes no texto que se analisa, a semântica se ocupa das ações paradigmáticas (relativas ao discurso como sistema), as quais podem ser in praesentia e in absentia: um fato do texto evoca outro do mesmo texto mas situado alhures, ou de outro texto; um episódio simboliza uma ideia, outro ilustra um traço psicológico etc.”70 Para Todorov, a questão semântica se desenvolveu muito pouco na poética. Acerca desse aspecto, o autor apontou dois diferentes tipos de questões: as formais e as substanciais. As questões semânticas formais se preocupam com a maneira com que um texto passa a apresentar um significado. Quanto a isso devemos distinguir a questão da significação da questão da simbolização. A primeira acontece no plano 69 70 Ibidem. p. 44. Ibidem. p. 46. 83 do vocabulário e diz respeito à ação do significante evocar um significado; enquanto a segunda ocorre no plano textual, referindo-se à ação de um significado se remeter a outro. As questões semânticas substanciais são relacionadas aquilo que está sendo significado no texto. Aqui entra em discussão a analogia entre a literatura e os fatos exteriores aos escritos, tendo o mundo como referência. Para Todorov, a verossimilhança do texto deve ser definida de acordo com a consonância de um texto a uma determinada norma textual, ao gênero literário ao qual ele pertence – levando-se em consideração as mudanças que os gêneros literários sofrem com o passar do tempo –, e não a partir das características do mundo exterior. 3.2.3. A Metodologia de Algirdas Julien Greimas: O Quadrado Semiótico Resumidamente poderíamos definir semiótica como a ciência que estuda os signos através da análise de como conceitos e ideias surgem natural e culturalmente. Podemos dizer que ela busca revelar as formas como os indivíduos dão significado a tudo que os cercam. Essa ciência rendeu inúmeros estudos, especialmente a partir de meados do século XX – destacando-se os de Ferdinand de Saussure, Roland Barthes, dentre tantos outros respeitáveis especialistas no assunto –, mas que para este trabalho não se faz necessário explicitar tão aprofundadamente. Trabalharemos aqui com a metodologia de análise literária específica do quadrado semiótico, elaborada por Algirdas Julien Greimas. Para explicar o que seria esta técnica, nada melhor do que a definição do próprio autor acerca de seu método: “Compreende-se por quadrado semiótico a representação visual da articulação lógica de uma categoria semântica qualquer. A estrutura elementar da significação, quando definida – num primeiro momento – como uma relação entre ao menos dois termos, repousa apenas sobre a distinção de oposição que caracteriza o eixo paradigmático da linguagem”71. 71 GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Dicionário da Semiótica. São Paulo: Ed. Contexto, 2008, p. 400. 84 Para melhor compreender o funcionamento do quadrado semiótico, é indispensável apresentarmos os elementos que o compõem. O quadrado semiótico surge a partir de dois termos geradores, S1 e S2, que apresentam entre si uma relação de contrariedade; em seguida, a partir de cada termo gerador, deriva-se o seu elemento antagônico, isto é, o elemento com que mantém uma relação de contrariedade, -S1 e -S2. Cada elemento é representado em posição diagonal ao seu oposto, fazendo com que nasça, assim, o quadrado. Os termos geradores são chamados de contrários, enquanto seus opostos são os subcontrários. Cardoso explica que “S1 e S2 são contrários porque, no interior do texto examinado, a negação de um implica a afirmação do outro (ou, no mínimo, pode implicá-la) e vice-versa. Assim, -S2 implica S1 e -S1 e S2”.72 Sintetizando, podemos dizer que existe uma relação de complementaridade entre -S2 e S1 ou entre -S1 e S2. Apresentamos abaixo uma representação simples e bastante autoexplicativa do quadrado semiótico de Greimas (Fig.6), a fim de que a explicação anterior seja melhor compreendida: Fig.6 – Quadrado Semiótico. Fonte: http://semiotica.tumblr.com/post/19236808306/quadrado-semiotico Acesso em: 10 de fevereiro de 2013. 72 CARDOSO, op. cit. p. 111. 85 Duas questões acerca do quadrado semiótico devem ser elucidadas: (1) A utilização das nomenclaturas “positivo” e “negativo” não denota qualquer tipo de valoração, isto é, não demonstra que um elemento seja melhor ou pior do que o outro nem nada parecido, tratando-se apenas de uma convenção espacial; (2) O quadrado semiótico admite unicamente dois percursos: de S1 a S2 passando por -S1; e de S2 a S1 passando por -S2. Demonstraremos o funcionamento do quadrado semiótico no próximo item desta dissertação, quando trataremos da análise textual específica da fonte base desta pesquisa, a Contenda de Apepi e Sequenenra. 86 3.3. ANÁLISE DO TEXTO E APLICAÇÃO DO MÉTODO 3.3.1. A Sociologia Genética na Contenda de Apepi e Sequenenra Partindo das ideias de Lucien Goldmann, em sua sociologia genética, levaremos em consideração que os valores humanos individuais se inserem na estrutura do pensamento teórico, influenciando e interferindo diretamente em toda a produção humana, especialmente no que diz respeito às obras literárias. Sendo, por conseguinte, tarefa dos pesquisadores das ciências humanas analisar e destacar esses dados, a fim de buscarmos uma maior objetividade dos fatos tentaremos mostrar aqui esses elementos subjetivos para que possamos compreender melhor o contexto históricoliterário de produção da Contenda de Apepi e Sequenenra da maneira mais imparcial possível. Para evitarmos anacronismos temos que levar em consideração que a sociedade egípcia era completamente diferente das sociedades contemporâneas, tanto fisicamente, quanto em sua forma de pensar e perceber o mundo. Portanto, não podemos utilizar certos conceitos modernos nem tentar estabelecer comparações entre aquela civilização e as atuais, por serem completamente distintas e, consequentemente, impossíveis de serem comparadas. Pensando na já citada ideia de que “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de outro texto”73, devemos considerar a intertextualidade como um elemento influenciador da criação literária. Considerando a intertextualidade como sendo a criação de um texto a partir de um outro texto já existente e tendo em vista que todo escrito absorve elementos tanto de outros textos, quanto da cultura na qual o escritor está inserido, logo constatamos que o autor sofre diversas influências ao escrever, não apenas de suas leituras precedentes, como também de elementos de sua sociedade. Goldmann busca analisar e compreender o contexto social em que uma obra literária foi criada, o que é de grande contribuição para o entendimento histórico. Segundo ele, através da análise das estruturas internas do texto seria possível estabelecer um paralelo com o contexto histórico da criação, objetivando a 73 BAINES, John. “Interpreting Sinuhe”. JEA, 68. London, 1982, p. 34-35. 87 compreensão da maneira de pensar de uma determinada época e o maior entendimento acerca dos elementos culturais que lhe cercam. Seguindo adiante, a partir das premissas básicas do método de Goldmann que foram expostas anteriormente, e levando em consideração que as estruturas categoriais significativas (estruturas mentais) são fenômenos sociais e não individuais, os sujeitos responsáveis pela produção textual – que são os que aqui nos interessam – são influenciados não apenas pelas suas experiências individuais, mas especialmente pelas experiências encaradas pelo grupo social do qual fazem parte, o que, consequentemente, incide sobre sua produção textual. Goldmann fala também da relação entre a consciência de classe e a estrutura do universo imaginário presentes na narrativa. De acordo com o autor, essa relação deve ser encarada como uma homologia estrutural, na qual embora a estrutura do universo imaginado no texto conecte-se à ideologia de classe do autor, os elementos presentes na obra podem ser diferentes ou inclusive opostos uns aos outros, já que a homologia postulada liga-se à estrutura textual e não ao conteúdo do texto propriamente dito. As estruturas mentais, que são um dos elementos mais importantes na produção literária, seriam as grandes responsáveis pela qualidade do texto. Essas estruturas que perpassam pelo universo ficcional do escrito são inconscientes, sendo, por conseguinte, necessária uma análise sociológica para que se possa compreendê-las melhor. Levando tudo isso em consideração, devemos ponderar acerca das premissas estipuladas por Goldmann, aceitando que elas se relacionam entre si, explicando e complementando umas às outras e sendo, portanto, interconectadas. Além disso, precisamos atentar para o fato de que a partir dos dois princípios que servem de base para o método de Goldmann, a compreensão e a explicação, faz-se necessário compreender a estrutura significativa da obra a fim de que, em seguida, seja possível explicar os elementos que a constituem. Partindo daí, primeiramente devemos estabelecer uma analogia entre os textos egípcios e a categoria dos escribas, por serem eles os grandes responsáveis pela criação literária e pela cópia de textos no Egito Antigo. A análise do grupo social responsável pela escrita faz-se necessária para auxiliar a compreensão do que foi escrito e do contexto em que foi produzido o texto, já que com base na sociologia 88 genética, acreditamos que o ambiente e a cultura em que os autores dos textos estavam inseridos influenciam direta ou indiretamente, conscientemente ou não, a criação literária. É de conhecimento geral que os escribas formavam uma classe privilegiada no Antigo Egito. Não apenas por saberem ler e escrever, já que eles compunham boa parte do grupo minoritário dos letrados daquela sociedade, como também por ocuparem um cargo de grande prestígio, no qual eram responsáveis pelo registro escrito de grande parte do que acontecia naquela civilização. Levando tudo isso em consideração, precisamos ter em mente que eles trabalhavam para o Estado, logo, ao escreverem ou transcreverem algum documento acabavam por expor a ideologia dominante que representaria a maneira de pensar do governante egípcio, assim como das camadas mais abastadas daquela população. Somado ao fator acima citado de suma importância para compreendermos diversos elementos acerca dos públicos produtor e consumidor dos gêneros literários egípcios, em relação ao conto de Apepi e Sequenenra uma outra característica a esta correlacionada pode ser destacada: o simples fato dos escribas serem egípcios. A princípio esse elemento passaria despercebido, sem receber qualquer importância, mas na conjuntura em questão – o contexto da dominação hicsa – este soa como um ponto de análise fundamental para a pesquisa. Considerando a sociologia genética de Goldmann, defendemos que, sendo egípcios, os escribas sofreriam naturalmente a influência cultural de sua sociedade e, por isso, conscientemente ou não, aplicariam tal influência em seus registros. Isso fica bastante visível na contenda quando notamos a ocorrência da já comentada euforização direta de Sequenenra e da disforização indireta de Apepi. Apesar de ficar clara no texto uma certa supremacia do governante hicso, tendo em vista que os egípcios eram obrigados a lhe pagar tributos (linhas 7-8), em vários momentos são feitos comentários que demonstram que naquele contexto a sociedade egípcia encontrava-se fora de sua ordem natural, o que, sem dúvida alguma, era algo difícil de ser compreendido e situado tanto pelos escribas, quanto pelo restante da população. Só para citarmos, percebemos essa disforização indireta de Apepi e a euforização de Sequenenra quando, mesmo na época sendo de conhecimento 89 público que o Egito encontrava-se sob domínio hicso, logo no início do texto (linhas 1-8), o autor afirma que o país estava em aflição por não possuir um Senhor como rei já que, apesar de Sequenenra ter controle sobre o Sul do país, os asiáticos controlavam uma parte da região e todos os egípcios eram obrigados a lhe pagar tributos. O trecho deixa claro que o elemento que estaria descontextualizado da tradição egípcia seria o estrangeiro como governante enquanto o líder egípcio encontrava-se submetido a ele, já que era justamente este o fator que incomodava a população, deixando-a em aflição. Não podemos esquecer, é claro, que o texto da contenda foi escrito posteriormente ao domínio hicso e essa disforização do estrangeiro figuraria como um elemento de desvalorização hicsa em um contexto em que se buscava exaltar a supremacia egípcia. Outro item que precisa ser comentado à luz da metodologia de análise textual de Goldmann é referente à questão da recepção. Embora não saibamos com precisão a porcentagem da população letrada no Egito Antigo – e este seja um assunto bastante discutido em Egiptologia –, podemos afirmar que o público leitor naquela sociedade era bastante reduzido se comparado à totalidade de sua população. Apesar de a população erudita representar uma minoria, um número bastante considerável de egiptólogos concorda que pelo menos uma parte da população analfabeta tinha acesso aos textos egípcios por meio de leituras em voz alta ou de encenações. É certo que a situação governamental egípcia durante o Segundo Período Intermediário (c. 1650-1550 a.C.), por fugir dos padrões culturais e contrariar a ordem natural egípcia, deveria ser bastante difícil de ser compreendida pela população que viveu tal conjuntura, especialmente se pensarmos no viés político-religioso relacionado ao caráter da monarquia divina, em que o faraó era uma espécie de representante dos deuses na Terra. Para eles, a não existência de um faraó de origem egípcia, possuidor do controle total sobre o território das Duas Terras, figuraria uma situação de desequilíbrio que, de modo simplificado, poderíamos dizer que resultaria no caos. Mas se pensarmos posteriormente, mais precisamente no contexto em que a contenda de Apepi e Sequenenra teria sido escrita ou reproduzida, já durante o Reino Novo, poderíamos enxergar a euforização de Sequenenra e a disforização de Apepi como artifícios do governo – ou de uma classe dominante como um todo – para, de certa forma, exaltar o lado sob governo egípcio, enquanto desvalorizava o lado sob poder 90 estrangeiro, tanto para aqueles que lessem ou ouvissem o conto no momento em que foi redigido, quanto pela posteridade. 3.3.2. A Poética Estruturalista na Contenda de Apepi e Sequenenra Por esta pesquisa propor uma análise histórico-literária da Contenda de Apepi e Sequenenra, optamos por trabalhar apenas com um dos aspectos da poética estruturalista de Todorov, o sintático, deixando aqui de lado intencionalmente os aspectos verbal e semântico por acreditarmos que eles historicamente nos acrescentariam muito pouco e não seriam de grande proveito para responder aos nossos questionamentos referentes aos elementos centrais do conto e seu contexto de produção. Optamos, portanto, por trabalhar com a sintaxe narrativa, para que através dela apresentemos uma visão esquematizada e estruturada de nossa fonte de pesquisa. Como exposto anteriormente, o aspecto sintático visa estabelecer relações entre as diferentes partes do texto para que se torne possível analisá-lo e perceber a sua estrutura. Partindo disso, para que possamos trabalhar com a sintaxe narrativa aplicada ao conto de Apepi e Sequenenra, decompusemos o texto em algumas sequências narrativas e, a partir destas, seguimos a divisão em cinco partes sugerida por Todorov – (1) situação inicial; (2) perturbação da situação inicial; (3) desequilíbrio ou crise; (4) intervenção na crise; (5) novo equilíbrio. 91 Sequência 1 Proposição Narrativa 1: Apresentação dos personagens e da situação do Egito no momento representado no conto (final do Segundo Período Intermediário), em que o poder estava dividido entre dois governantes, um de origem egípcia (Sequenenra) e outro de origem asiática (Apepi), ressaltando o fato do poder estar dividido e de não haver um verdadeiro rei governando todo o território egípcio, mas, apesar disso, estarem todos sob o domínio do estrangeiro tendo, inclusive, que lhe pagar tributos. (linhas 1-8) Situação Inicial Proposição Narrativa 2: Descrição da monolatria de Apepi por Sutekh (versão do deus egípcio Seth associada a uma divindade asiática), deixando claro que o hicso se recusava a prestar culto a todos os outros deuses do país a não ser este. (linhas 9-16) Proposição Narrativa 3: Descrição da monolatria de Sequenenra por Amon-Ra e, assim como na relação de Apepi para com Sutekh, fica claro no texto que o rei egípcio cultuava apenas essa divindade dentre todas as do país. (linhas 28-30) Perturbação da Situação Inicial Proposição Narrativa 4: Apepi resolve enviar uma mensagem provocativa para Sequenenra e convoca seus conselheiros para lhe sugerirem o que dizer. Estes lhe sugerem usar como desculpa para reclamar o barulho emitido pelos hipopótamos habitantes da região governada por Sequenenra. (linhas 17-27) – (Há muitas lacunas nesta parte do conto) Proposição Narrativa 5: Apepi envia, então, uma mensagem Desequilíbrio/Crise oral a Sequenenra utilizando-se do motivo sugerido pelos seus conselheiros para reclamar. (linhas 30-35) Intervenção na Crise Proposição Narrativa 6: O mensageiro de Apepi chega na cidade de Sequenenra e transmite a reclamação de Apepi acerca dos hipopótamos, deixando Sequenenra estupefato e sem saber como responder. O líder tebano questiona se era aquilo mesmo que Apepi lhe mandou dizer e o mensageiro o manda pensar no assunto. (linhas 36-48) Proposição Narrativa 7: Sequenenra manda seus empregados cuidarem bem do mensageiro de Apepi e este 92 recebe um ótimo tratamento. (linhas 49-51) Novo Equilíbrio Proposição Narrativa 8: Sequenenra responde ao mensageiro mandando-lhe dizer a Apepi que fará tudo o que foi solicitado pelo soberano estrangeiro. O mensageiro retorna para sua origem. (linhas 51-54) Sequência 2 Situação Inicial Igual ao novo equilíbrio da primeira sequência. Perturbação da Situação Inicial Proposição Narrativa 8: Sequenenra convoca seus conselheiros e repete-lhes a reclamação feita por Apepi. Os conselheiros não conseguem responder-lhe bem nem mal a respeito da mensagem. (linhas 55-60) Proposição Narrativa 9: O texto é interrompido justamente no momento em que aparentemente Apepi estaria enviando Desequilíbrio/Crise uma nova mensagem para Sequenenra, não nos permitindo conhecer o seu teor. (linhas 61-62) Intervenção na Crise (...) Novo Equilíbrio (...) A partir da observação das duas sequências expostas acima – sendo a segunda incompleta, em virtude da interrupção da fonte causada pela perda de parte do papiro –, podemos notar algumas ações secundárias que foram desencadeadas pelos acontecimentos imediatamente anteriores sendo, portanto, reações e consequências daquelas ações primárias. 93 Através desta sintaxe narrativa é possível destacar alguns elementos fundamentais presentes no conto – e que já foram algumas vezes comentados nesta pesquisa –, como a questão política que mais uma vez se sobressai, não apenas quando tocamos no tema da divisão do poder egípcio durante o Segundo Período Intermediário, mas, principalmente, quando fica clara a influência do rei hicso sobre o egípcio, tendo em vista de que mesmo a reclamação acerca do barulho emitido pelos hipopótamos ser absurda, Sequenenra se compromete em acatar tudo o que lhe foi solicitado. Embora a questão religiosa esteja presente na apresentação da sequência número 1, a ela não é dada continuidade ao longo do restante do texto, servindo-nos apenas para tornar evidente o elemento das monolatrias, tanto por parte de Apepi, quanto por Sequenenra, sendo cada uma delas relacionada a uma divindade distinta – Sutekh e Amon-Ra, respectivamente. O trecho sobrevivente da Contenda de Apepi e Sequenenra é relativamente curto, o que explica o número de sequências – apenas duas, sendo uma não finalizada – e proposições narrativas – nove, no total – bastante reduzido. Apesar disso, o texto apresenta informações importantes acerca do contexto político daquela época, dos quais podemos extrair interessantes elementos de análise histórica como, por exemplo, a coexistência de dois governantes e a submissão do governante egípcio ao hicso. 94 3.3.3. O Quadrado Semiótico na Contenda de Apepi e Sequenenra Entendendo-se que: representa uma relação de contradição representa uma relação de contrariedade recíproca representa uma relação de complementaridade Aplicando o quadrado semiótico, de Greimas, à Contenda de Apepi e Sequenenra, optamos por estabelecer apenas uma correlação, que se refere a um dos temas centrais desta pesquisa, a questão política, assunto já levantado no capítulo anterior. 95 Para a questão política, estabeleceremos a seguinte relação: S1: Sequenenra como soberano egípcio S2: Apepi como soberano egípcio -S1: Apepi não-Faraó -S2: Sequenenra não-Faraó (Observação: Neste caso, entende-se “Faraó”, bastante simplificadamente, como aquele que tem controle sobre todo o Egito). Selecionamos os principais trechos onde fica clara a dualidade acerca do governo egípcio daquela época – o Segundo Período Intermediário (c. 1650-1550 a.C.) – e, mais a frente, após a exposição desta seleção em tabela comentaremos o assunto detalhadamente: 96 S1 Sequenenra como soberano egípcio  “o rei Sequenenra (...) era governante (...) da Cidade do Sul (Tebas)”. (linhas 3-5)  “rei Sequenenra (...) o Príncipe da Cidade do Sul” (linhas 18-19)  S2 Apepi como soberano egípcio  “o Príncipe Apepi (...) (estava) em Avaris”. (linhas 5-6)  “o país inteiro provia-lhe (contribuições), submetido a seus tributos; o Norte, igualmente, tributava(-lhe) todos os bons produtos do Delta.” (linhas 7-8)  “rei Apepi” (linhas 9, 12, 17, 20, 34, 36, 39, 44, 50, 52, 58, 61) “Príncipe da Cidade do Sul” (linha 32, 34-35, 35, 43, 45, 49, 55) “(ó) soberano (...), nosso senhor!”  (linhas 24-25) “Senhor” (linhas 46, 54)  -S1 Apepi não-Faraó -S2 Sequenenra não-Faraó  “não havia um Senhor (...) como rei da(quela) época” (linhas 1-3)  “não havia um Senhor (...) como rei da(quela) época” (linhas 1-3)  “o rei Sequenenra (...) era governante (...) da Cidade do Sul (Tebas)”. (linhas 3-5)  “o Príncipe Apepi (...) (estava) em Avaris”. (linhas 5-6)  “rei Sequenenra (...) o Príncipe da Cidade do Sul” (linhas 18-19)  “Príncipe da Cidade do Sul” (linha 32, 34-35, 35, 43, 45, 49, 55) A fim de facilitar a análise da contenda, optamos por ocultar a saudação ritual “vida, prosperidade, saúde para ele!” ao citarmos as denominações reais presentes no texto. Apesar disso, não podemos deixar de levar em consideração que o fato delas serem utilizadas quando o texto se refere a Apepi, representa mais um exemplo de legitimação do poder real do estrangeiro. 97 Para melhor observarmos a variação de títulos atribuídos aos personagens principais da contenda, apresentamos a seguir o levantamento das nomenclaturas utilizadas referentes a ambos os governantes juntamente com as linhas em que elas aparecem no conto e, em seguida, uma tabela ilustrando os valores numéricos indicativos desses títulos.  Sequenenra: rei Sequenenra (3ª linha); governante da Cidade do Sul (4ª e 5ª linhas); rei Sequenenra (18ª linha); Príncipe da Cidade do Sul (19ª linha); Príncipe da Cidade do Sul (28ª linhas); Príncipe da Cidade do Sul (32ª linha); Príncipe da Cidade do Sul (34ª e 35ª linhas); Príncipe da Cidade do Sul (35ª linha); Príncipe da Cidade do Sul (43ª linha); Príncipe da Cidade do Sul (45ª linha); Príncipe da Cidade do Sul (49ª linha); Príncipe da Cidade do Sul (55ª linha).  Apepi: Príncipe Apepi (5ª e 6ª linhas); rei Apepi (9ª linha); rei Apepi (12ª linha); rei Apepi (17ª linha); rei Apepi (20ª linha); soberano (24ª linha); Senhor (25ª linha); rei Apepi (31ª linha); rei Apepi (34ª linha); rei Apepi (36ª linha); rei Apepi (39ª linha); rei Apepi (44ª linha); Senhor (46ª linha); rei Apepi (50ª linha); rei Apepi (52ª linha); Senhor (54ª linha); rei Apepi (58ª linha); rei Apepi (61ª linha). SEQUENENRA APEPI TÍTULO QUANTIDADE TÍTULO QUANTIDADE “Príncipe da Cidade do Sul” 9 “Príncipe Apepi” 1 “rei Sequenenra” 2 “rei Apepi” 13 “governante da Cidade do Sul” 1 “soberano” 1 “Senhor” 3 98 Todas as vezes em que de algum modo o texto se refere a um dos dois governantes em questão, o rei hicso Apepi ou o rei egípcio Sequenenra, aparece a saudação ritual “vida, prosperidade, saúde para ele!”, que era tradicionalmente utilizada nos textos egípcios ao se referirem à figura do faraó. Fica, portanto, entendido que, nesse conto, elas acompanham todos os nomes reais ou expressões que remetam de algum modo a reis. Levando-se em consideração ser a coexistência de soberanos uma situação não tão comum na história egípcia, é bastante perceptível no conto a dificuldade – talvez do próprio autor ou do copista do texto – de se utilizar uma denominação específica para os governantes em questão, o que pode ser facilmente constatado pela grande diversidade de títulos que ali aparecem. Essa dificuldade de definir a situação do governo é ainda mais contraditória quando observamos que logo no primeiro parágrafo, entre a primeira e a terceira linhas, é dito que o país estava em aflição por não possuir um rei naquela época, mas, apesar desta afirmação, aparecem expressões ao longo de todo o escrito que se referem tanto à Apepi quando à Sequenenra como reis e, mais ainda, a utilização constante da saudação ritual “vida, prosperidade, saúde para ele!”, normalmente usada para saudar especificamente a figura do faraó, também sendo utilizada ao se fazer referência a ambos. A situação egípcia naquele momento era verdadeiramente atípica, tendo ocorrido pouquíssimas vezes – se comparada às centenas de nomes faraônicos de que temos conhecimento – ao longo de toda história do Antigo Egito. Devido a isso, é compreensível a dificuldade do escriba ao tocar no assunto, como deveria ser também de difícil entendimento para a população da época, por ser essa uma circunstância que contrariava a ordem natural da sociedade, que segundo uma visão de mundo própria, a figura do faraó não representava apenas uma liderança política, mas possuía um caráter religioso extremamente forte e interligado a todas as suas demais funções, sendo ele uma espécie de representante e herdeiro dos deuses na Terra. Em todo o texto é mostrado o caráter ambíguo do governo egípcio ao longo do Segundo Período Intermediário (c. 1650-1550 a.C.), devido à simultaneidade de dois reis em uma mesma unidade territorial, muito embora ocorresse certa divisão, já que Sequenenra exercia sua influência basicamente no 99 Alto Egito, a medida que o poder de Apepi concentrava-se principalmente no Médio e no Baixo Egito, sobretudo na região do Delta. Não podemos esquecer, é claro, que o Sul de Sequenenra era, pelo menos de certa forma, submetido à Apepi, como fica claro em nossa fonte e em outros documentos egípcios ao se referirem aos impostos pagos pela população daquela região ao rei hicso. Como pudemos observar na tabela quantitativa apresentada anteriormente, Apepi aparece muito mais vezes (treze, ao todo), na parte do texto que sobreviveu, sendo mencionado como “rei”, enquanto a maioria das vezes em que se fala de Sequenenra, este é retratado como “Príncipe da Cidade do Sul” (nove vezes), o que certamente representa que, embora houvesse grande dificuldade por parte do escriba e da população de qualificar aquela situação, o poder de Apepi era sim perceptível. Com a aplicação do quadrado semiótico sobre essa questão, que é basilar em nossa pesquisa, conseguimos perceber ainda mais facilmente as contradições que permeiam toda aquela situação política fora do comum. Primeiramente, entre S1 e S2, “Sequenenra como soberano egípcio” e “Apepi como soberano egípcio”, destacamos uma relação de contrariedade recíproca, tendo em vista que se seguíssemos a lógica natural do poder no Egito Antigo, a existência de um soberano automaticamente impossibilitaria que houvesse outro, já que apenas um indivíduo poderia ocupar o cargo de faraó por vez, e somente após a sua morte outro assumiria a sua posição. Sabemos, no entanto, que nesse caso estamos tratando de uma situação anormal na história egípcia, em que existiram sim dois governantes concomitantemente, sendo um egípcio e outro hicso, durante todo o Segundo Período Intermediário (c. 1650-1550 a.C.), pois o território egípcio encontrava-se em grande parte sob controle do povo asiático, estabelecendo-se, portanto, uma situação em que nenhum dos dois governantes era realmente o Faraó, único Senhor das Duas Terras. E aí chegamos ao -S1 e ao -S2, isto é, nem Apepi nem Sequenenra eram de fato faraós no sentido pleno do termo. Seguindo adiante, tanto entre S1 e -S2 e entre S2 e -S1 percebemos relações de contradição, já que uma afirmação contraria a outra. Enquanto S1 representaria a posição defensora de Sequenenra como soberano egípcio, em –S2 afirmamos que o rei egípcio não era de fato faraó, já que ele não exercia poder sobre todo o Egito, além de submeter-se a pagar impostos a outro governante 100 dentro de seu próprio território e, retomando o assunto do parágrafo anterior, dividia o poder sobre o Egito com outra pessoa, o que contrariava por completo a posição faraônica. O mesmo ocorre entre S2 e -S1, trocando-se apenas a figura de Sequenenra pela de Apepi, com a diferença – importantíssima, sem dúvidas – de que o rei hicso não estava submetido a nenhum outro governante, o que não diminui o fato de que ele não estava sozinho no poder e, assim sendo, também não poderia ser intitulado faraó. Por último, passemos para as relações de complementaridade. Podemos dizer que -S1 complementa S1 e que -S2 complementa S2 à medida que todas as afirmativas a eles relacionadas nos levam para o mesmo ponto: a não existência de um faraó, no sentido completo do termo, naquele momento da história egípcia antiga. Se o governo do Egito estava dividido, simplesmente não havia um Senhor das duas Terras. 101 CONCLUSÃO A partir dos métodos de análise histórico-literários utilizados nesta pesquisa pudemos analisar o contexto social em que a contenda de Apepi e Sequenenra foi produzida. Levando-se em conta que os indivíduos são influenciados não apenas pelas suas próprias experiências pessoais, como ainda pelo grupo social do qual fazem parte, podemos afirmar que o ambiente e a cultura em que os escritores estão inseridos influenciam, mesmo que indiretamente, sua produção textual. Sabendo que os escribas eram os grandes responsáveis pela escrita no Egito Antigo, que estes trabalhadores pertenciam a um grupo social privilegiado naquela sociedade e que na imensa maioria das vezes trabalhavam para o faraó, acreditamos que ao escreverem algum documento eles expunham a ideologia dominante que representava a maneira de pensar tanto do governante, quanto das camadas dominantes daquela população. Esse fator fica bastante evidenciado no conto de Apepi e Sequenenra, especialmente quando percebemos a ocorrência de uma euforização de Sequenenra, que era egípcio, e de uma disforização de Apepi, hicso, em algumas das já citadas passagens do texto, o que soaria como uma forma de valorização do egípcio mediante uma desvalorização do estrangeiro. Quanto a isto, devemos levar em consideração que a contenda foi escrita posteriormente ao fim do domínio hicso e que a desvalorização do estrangeiro seria algo natural num momento em que se buscava exaltar a supremacia egípcia sobre os hicsos. A recepção dos textos egípcios é outro fator extremamente importante quando pensamos no contexto de produção literária daquela sociedade. Apesar de não sabermos com exatidão a porcentagem da população letrada no Egito Antigo, podemos afirmar que mediante o grande número de textos e de cópias existentes de alguns deles, é bastante provável que um número considerável daquela população tivesse acesso à produção escrita, quando não através da leitura individual, por meio de leituras em voz altas ou encenações, o que representaria um bom meio de se espalhar ideias que atenderiam aos interesses dominantes sobre toda a população. Outro elemento que se destacou ao longo desta pesquisa foi o caráter da monarquia egípcia e a desordem cósmica acarretada por não haver um único líder político no Egito exercendo seu poder sobre as Duas Terras, e por um governante 102 estrangeiro (asiático, mais especificamente) submeter, governar e tributar aquela civilização, além de ser hierarquicamente superior ao rei egípcio de Tebas, mostra que não podemos considerar nem Apepi nem Sequenenra como faraós no pleno sentido do termo, isto é, levando-se em consideração não apenas o caráter político dessa função, mas especialmente o papel religioso ocupado pela figura faraônica no Antigo Egito. Relacionado à questão anterior, destacamos também ser visível a dificuldade do escriba – seja ele autor ou copista – ao tentar estabelecer no texto uma titulatura específica para se referir aos dois personagens centrais, Apepi e Sequenenra, por ser aquela uma situação notadamente atípica na história egípcia e, por conseguinte, não haver uma nomenclatura específica para esse tipo de governo ou governante, o que pode ser facilmente percebido na grande variação de títulos utilizados pelo escritor quando mencionava as figuras dos reis. O episódio da expulsão dos hicsos é mais um elemento que merece destaque referente ao contexto histórico ao qual o conto nos remete, tendo em vista a suposição de que o texto se encaminharia para uma luta armada, já que se deve levar em consideração que alguns elementos apresentados no conto coincidem com o contexto histórico do período, que, aproximadamente duas décadas mais tarde, culminaria na vitória egípcia e a consequente expulsão dos hicsos do território egípcio. O estado em que se encontra a múmia do soberano egípcio, Sequenenra, funcionaria justamente como uma importante prova a esse respeito, corroborando a hipótese de conclusão textual através do desenlace bélico, já que historicamente é de conhecimento geral em Egiptologia que o fim do domínio hicso no Egito teria se dado deste modo, servindo de marco para o final do Segundo Período Intermediário (c. 1650-550 a.C.) e o início do Reino Novo (c. 1550-1069 a.C.). O assunto religioso, em que se destaca a monolatria divina por parte dos governantes, é outro dos principais temas retratados nesta dissertação. Através da análise textual percebemos que o conto apresenta claramente esse culto monolátrico em duas esferas distintas, o contexto do faraó hicso, que aparentemente cultuava monolatricamente o deus Sutekh (uma das formas apresentadas por Seth, como já foi esclarecido anteriormente), e o do faraó tebano, que é retratado fazendo o mesmo em relação a Amon-Rá. Essa contraposição entre Seth e Amon, no plano divino, representaria para muitos egiptólogos a duplicação da oposição entre Apepi e 103 Sequenenra, no plano régio, sendo este um artifício literário para demonstrar que a luta dos reis seria paralela à disputa entre seus deuses preferidos. Cabe ressaltar que a fonte refere-se apenas ao culto religioso régio e tal prática monolátrica faraônica, até onde se sabe, não teria interferido no politeísmo básico daquela civilização. Portanto, embora até o presente momento tenha sido encontrado apenas um trecho relativamente curto da Contenda de Apepi e Sequenenra e este texto apresente cunho de ficção, ele é recheado dos mais diversos assuntos históricos, sobressaindo-se diferentes questões políticas, religiosas, literárias, etc. que, em conjunto com outras fontes e trabalhos de diversos egiptólogos, é de grande importância para o conhecimento historiográfico acerca da civilização egípcia antiga. 104 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. FONTES PRIMÁRIAS ARAÚJO, Luís Manuel de. “Apopi e Sekenenré” in Mitos e Lendas do Antigo Egito. Lisboa: Livros e Livros, 2005, p. 191-194. BUDGE, E. A. Wallis. Facsimiles of Egyptian Hieratic Papyri in the British Museum. 2ª série. Londres : British Museum, 1923, p. LIII-LV. CARDOSO, Ciro Flamarion S. Apepi e Seqenenra (Papiro Sallier I: BM nº 10.185). Tradução e transliteração inéditas cedidas gentilmente pelo autor. Nitéroi, 2011. GARDINER, Alan H. (Ed.). Late-Egyptian Stories. 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Niterói, RJ: Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2012. 110 GLOSSÁRIO Avaris (em egípcio: Hut-waret (ḥw.t-wˁr.t), em grego: Auaris, αυαρις): cidade do Antigo Egito construída pelos invasores hicsos, durante o Segundo Período Intermediário, para servir-lhes de capital. Foi destruída quando da derrota dos hicsos, na XVIIª dinastia, por Kamosis, e reconstruída mais tarde por Ramsés II, que a rebatizou de Pi-Ramsés ou Per-Ramsés (“Casa dos Raméssidas”), e fez da cidade a nova capital de seu reinado. Estima-se que a localização da cidade esteja na atual Tell-el-Daba, localizado no Delta do Nilo. Casas da Vida (em egípcio: Per Ankh): instituição existente no Egito Antigo dedicada ao ensino da escrita egípcia, além de funcionar como uma espécie de biblioteca e arquivo de manuscritos. Apenas os escribas e os sacerdotes egípcios tinham acesso a esses locais. Deir-el-Bahri: também conhecida como Deir el-Bahari (transliteração: ad-dayr albaḥrī; sentido literário: "Mosteiro do Norte") é um complexo de sepulturas e templos mortuários dos antigos egípcios situados na margem ocidental do rio Nilo, no lado oposto à cidade de Luxor, no Egito. Disforização: Ato ou efeito de disforizar, de desvalorizar; desvalorização. Epíteto: É um substantivo, adjetivo ou expressão que se associa a um nome para qualificá-lo, podendo ser aplicado a pessoas, divindades, objetos etc. Escrita pictográfica: É a forma de escrita pela qual ideias e objetivos são transmitidos através de desenhos que os representem. Originou-se na Antiguidade, com as escritas cuneiforme, da Mesopotâmia, e hieroglífica, do Egito. Estelas de Kamés: Estelas encontradas no Templo de Karnak, elaboradas durante o governo de Kamés para comemorar uma campanha vitoriosa contra os hicsos. Os fragmentos da Primeira Estela de Kamés foram encontrados no ano de 1935 e, 111 atualmente, encontram-se no Museu do Cairo (Cairo, Egyptian Museum, Temp. no. II.I.35.I); A Segunda Estela de Kamés foi localizada praticamente intacta em 1954 e, atualmente, encontra-se no Museu de Luxor (Luxor Museum J. 43). Euforização: Ato ou efeito de euforizar, de valorizar; valorização. Filologia: Estudo de uma língua através de seus documentos escritos, que visa não só à restauração, fixação e crítica dos textos para o conhecimento do uso linguístico e sua história, mas também à compreensão de globalidade dos fenômenos culturais, especialmente os de ordem literária, a que ela serve de veículo. Hermenêutica: Seção da Filosofia que estuda a teoria da interpretação. Hicsos: Nome derivado do egípcio hekau khaswt, cujo significado é "senhores de terras estrangeiras". Abrangia não apenas um povo ou uma origem, mas todo o conjunto de populações estrangeiras que se estabeleceram no Egito, principalmente, no Delta, a partir do final do Reino Médio (c. 2055-1650 a.C.). Impuseram o seu domínio sobre o Baixo Egito, no Delta, durante o Segundo Período Intermediário (c. 1650-1550 a.C.). Metalinguagem: Consiste numa série de fatores e formas de linguagem que ao se unirem em conjunto passam a ser usadas como lgo único, a fim de expressar o sentido real, através da fantasia. Onomástica: Literalmente significa ato de nomear, de dar nome. É a ciência que estuda nomes próprios de todos os gêneros, das suas origens e dos processos de denominação no âmbito de uma ou mais línguas ou dialetos. Semântica: Semântica é o estudo do significado. Advém da relação entre significantes, tais como palavras, frases, sinais e símbolos, e o que eles representam, a sua denotação. 112 Semiótica: É o estudo dos signos (símbolos); é a ciência que estuda os fenômenos culturais como se fossem sistemas de significação, isto é, ela analisa como conceitos e ideias se processam natural e culturalmente. Simetria: Correspondência, em grandeza, forma e posição relativa de partes situadas em lados opostos. Remete à igualdade, à semelhança entre fatos. Sintaxe: É a parte da gramática que estuda a disposição das palavras na frase e a das frases no discurso, bem como a relação lógica das frases entre si. Sutekh: Versão assumida no Delta pelo deus egípcio Seth, ao ser assimilado a uma divindade asiática, iconograficamente semelhante ao deus Baal cananeu. Tablete de Carnarvon: Tablete localizado no início do século XX, em uma tumba da XVIIª Dinastia, em Deir el-Bahari, numa escavação promovida pelo egiptólogo amador Lorde George Carnarvon. Hoje se encontra no Museu Egípcio do Cairo (JE 41790). Teofóricos: Na onomástica, um nome teóforo ou teofórico é todo aquele que contém elementos alusivos a Deus ou a deidades. No caso egípcio, um dos exemplos mais comuns era o dos títulos adotados pelos faraós relacionando-os aos deuses, como, por exemplo, o de Sequenenra, que significa “aquele que Rá fez valente”, ou o de Tutankhamon, “imagem viva de Amon”. 113 ANEXOS 1. QUADRO CRONOLÓGICO GERAL74 CRONOLOGIA DAS DINASTIAS FARAÔNICAS DO ANTIGO EGITO (ATÉ 343 A.C.) (Todas as datas são a.C.) PERÍODO PRÉ-DINÁSTICO Badariano 4400-4000 Naqada I 4000-3500 Naqada II 3500-3200 Naqada III ou “Dinastia Zero” 3200-3000 PERÍODO DINÁSTICO PRIMITIVO Primeira Dinastia Aha Djet Den Rainha Merneith Andjib Semerkhet Khaa 3000-2890 Segunda Dinastia Hetepsekhemuy Raneb Nynetjer Uneg Sened Peribsen Khasekhemuy 74 2890-1686 Cronologia de autoria do Prof. Ciro Flamarion S. Cardoso. 114 REINO ANTIGO Terceira Dinastia Nebka Djeser (Neterikhet) Sekhemkhet Khaba Sanakht (?) Huni 2686-2613 2667-2648 2648-2640 2640-2637 (?) 2637-2613 Snefru Khufu Djedefra (ou Radjedef) Khafra Menkaura Shepseskaf 2613-2589 2589-2566 2566-2558 2558-2532 2532-2503 2503-2498 Userkaf Sahura Neferirkara Shepseskara Raneferet Nyuserra Menkauhor Djedkara Unans 2494-2487 2487-2475 2475-2455 2455-2448 2448-2445 2445-2421 2421-2414 2414-2375 2375-2345 Teti Userkara Pepy I (Merira) Merenra Pepy II Nitikhret 2345-2323 2323-2321 2321-2287 2287-2278 2278-2184 2184-2181 Quarta Dinastia Quinta Dinastia Sexta Dinastia Sétima e Oitava Dinastias 2181-2025 Numerosos reis efêmeros 115 PRIMEIRO PERÍODO INTERMEDIÁRIO Reis Heracleopolitanos (Décima Dinastia) Khety (Meryibra) Khety (Nebkaura) Khety (Uahlara) Merykara 2160-2025 Reis Tebanos (Décima Primeira Dinastia) Intef I (Sehertaury) Intef II (Uahankh) Intef III (Naktnebtepnefer) 2125-2112 2112-2063 2063-2055 REINO MÉDIO Décima Primeira Dinastia (Pós-Reunificação) Montuhotep II (Nebhepetra) Montuhotep III (Snkhkara) Montuhotep IV (Nebtauyra) 2055-2004 2004-1992 1992-1985 Décima Segunda Dinastia Amenemhat I (Sehetepibra) Senusret I (Kheperkara) Amenemhat II (Nubkaura) Senusret II (Khekheperra) Senusret III (Khakaura) Amenemhat III (Nimaatra) Amenemhat IV (Maakherura) Rainha Sebeknefru (Sebekkara) 1985-1956 1956-1911 1911-1877 1877-1870 1870-1831 1831-1786 1786-1777 1777-1773 Décima Terceira Dinastia Ugaf Sebekhetep II Iykhernefert Neferhetep Ameny-Intef-Amenemhat Hor Khedjer Sebekhetep III Neferhetep Sahathor Sebekhetep IV Sebekhetep V 1773-1650 116 Ay Décima Quarta Dinastia Reis de menor importância, talvez contemporâneos seja com a dinastia anterior, seja com a seguinte. SEGUNDO PERÍODO INTERMEDIÁRIO Décima Quinta Dinastia (Reis Hicsos) Seherkher Khyan Apepi (Auserra) Khamudi Décima Sexta Dinastia 1650-1550 1650-1580 Reis Tebanos, contemporâneos com a dinastia anterior. Décima Sétima Dinastia (Reis Tebanos) Rahotep Sebekemsaf I Intef VI Intef VII Intef VIII Sebekensaf II Saamon (?) Sequenenra Taa Kames (Uadjkheperra) 1580-1550 REINO NOVO Décima Oitava Dinastia Ahmes I (Nebpehtyra) Amenhetep I (Djeserkara) Thutmes I (Aakheperkara) Thutmes II (Aakheperenra) Thutmes III (Menkhperra) Rainha Hatshepsut (Maatkara) Amenhetep II (Aakheperura) 1550-1525 1525-1504 1504-1492 1492-1479 1479-1425 1473-1458 1427-1400 117 Thutmes IV (Menkheperura) Amenhetep III (Nebmaatra) Amenhetep IV / Akhenaten (Neferkheperura-uaenra) Neferneferuten Tutankhamon (Nebkheperura) Ay (Kheperkheperura) Horemheb (Djeserkheperura) 1400-1390 1390-1352 152-1336 1338-1336 1336-1327 1327-1323 1323-1295 Décima Nova Dinastia Ramsés I (Menpehtyra) Sety I (Menmaatra) Ramsés II (Uasermaatra-Setepenra) Merenptah (Banera) Amennessu (Menmira) Sety II (Userkheperura-Setepenra) Saptah (Akehnrasetepenra) Rainha Tausert (Sitrameritamen) 1295-1294 1294-1279 1279-1213 1213-1203 1203-1200 (?) 1200-1194 1194-1188 1188-1186 Vigésima Dinastia Setnakht (Userkhaura Meryamen) Ramsés III (Usermaatra Meryamen) Ramsés IV (Hekhamaatra Setepenamen) Ramsés V (Usermaatra Sekhepenra) Ramsés VI (Nebmaatra Meryamen) Ramsés VII (Usermaatra Setepenra Meryamen) Ramsés VIII (Usermaatra Akhenamen) Ramsés IX (Neferkara Setepenra) Ramsés X (Kheoermaatra Setepenra) Ramsés XI (Menmaatra Setepenra) 1186-1184 1184-1153 1153-1147 1147-1143 1143-1136 1136-1129 1129-1126 1126-1108 1108-1099 1099-1069 TERCEIRO PERÍODO INTERMEDIÁRIO Vigésima Primeira Dinastia Nesubanebdjed (Hedjkheperra Setepenra) Amenemnisu (Neferkara) Pasebakhaenniut (Psesunnes I Akheperra Setepenamen) Amenemope (Usermaatra Setepenamen) Osorkon, o Antigo (Akheperra Setepenra) Saamen (Netjerkheperra Setepenamen) Pasebakhaenniut (Psusennes II Titkheperura Setepenra) 1069-1043 1043-1039 1039-991 993-984 984-978 978-959 959-945 Vigésima Segunda Dinastia Sheshonkh I (Hedjkheperra) 945-924 118 Osorkon I (Sekhemkheperra) Sheshonkh II (Hekhakheperra) Takelot I Osorkon II (Usermaatra) Takelot II (Hedjkheperra) Sheshonkh III (Usermaatra) Pimay (Usermaatra) Sheshonkh IV (Aakheperra) Osorkon IV (Aakheperra) 924-889 (?) 889-874 874-850 850-825 825-773 773-767 76-730 730-715 Vigésima Terceira Dinastia Reis em vários centros, contemporâneos com a dinastia precedente (e com outras), entre eles: Pedubastis I Iuput I Sheshonkh IV Osorkon III Takelot III Rudamen Peftjauauybast Iuput II 818-715 Bakenrenef (Bocchoris) 720-715 Vigésima Quarta Dinastia Vigésima Quinta Dinastia Piy (Menkheperra) Shabakha (Neferkara) Shabitkha (Djedkahra) Takharkha (Khunefertemra) Tanutamani (Bakara) 747-716 716-702 702-690 690-664 664-656 PERÍODO TARDIO Vigésima Sexta Dinastia Nekau I Psamtek I (Uahibra) Nekau II (Uehemibra) Psamtek II (Neferibra) Apries (Haaibra) Ahmes (Khnemibra) Psamtek III (Ankhkaenra) 672-664 664-610 610-595 595-589 589-570 570-526 526-525 119 Vigésima Sétima Dinastia (Primeiro Período Persa) 525-404 Vigésima Oitava Dinastia Amyrtaios 404-399 Nefaarud Hakor (Khnemmaatra) Nepherites II 399-393 392-380 (?) Nextanebo I (Kheperkara) Taos (Irma Atenra) Nextanebo II (Senedjemibra Setepenanhur) 380-362 362-360 360-342 Vigésima Nona Dinastia Trigésima Dinastia 120 2. O CONTO DE APEPI E SEQUENENRA Apepi e Sequenenra (Papiro Sallier I: BM no 10.185)75 Transcrição Fonética e Tradução por Ciro Flamarion S. Cardoso (1,1)                     <    xpr swt wn.in tA n kmt m iAdt Acontecia, pois, (que) a terra do Egito (estava) na aflição, (já que) iw                           < nn wn nb anx wDA snb m nsw (n) hAw xpr ist rf não havia um Senhor (vida, prosperidade, saúde para ele!) como rei da(quela) época. Acontecia, então,                 ir nsw (sqn-n-ra)/ anx wDA snb sw m (HqA)/ anx wDA snb n 76 (que) o rei Seqenenra (vida, prosperidade, saúde para ele!) era (lit. ele na qualidade de) governante (vida, prosperidade, saúde para ele!) da                    > <  niwt rsyt iAdt m dmi aAmw iw wr Cidade do Sul (= Tebas). (Mas havia) aflição na cidade dos asiáticos, (pois) o Príncipe (1,2)                   (ippy)/ anx wDA snb m Hwt-wart iw xr-pw Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) (estava) em Avaris. Entrementes,                          abA n.f pA tA r-Dr.f Xr bAkw.sn mHtt o país inteiro provia-lhe (contribuições), submetido a (lit. sob) seus tributos; o Norte,                        m-mitt Xr (xt) nbt nfr(t) n tA-mHy igualmente, tributava(-lhe) (lit. sob) todos os bons produtos (lit. coisas) do Delta. Texto hieroglífico e emendas: Alan H. Gardiner. Late-Egyptian stories. Bruxelles: Fondation Égyptologique Reine Élisabeth, 1981 [1932], p. 85-88. 76 O nome Seqenenra significa algo como “Aquele tornado corajoso por Ra”. Com efeito, o verbo qni significa “ser corajoso”, sendo sqni o verbo causativo correspondente. 75 121                             (1,3) aHa.n nsw (ippy)/ anx wDA snb Hr irt n.f swtx Então, o rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) tomou (lit. fez) para si Sutekh                         m nb iw.f (Hr) tm bAk n nTr nb nty m pA tA r-Dr.f como deus (lit. Senhor). Ele se recusava a servir a (lit. trabalhar para) todos os deuses do país inteiro,                        (wpw[-Hr]) swtx iw.f Hr qd Hwt-nTr m bAkw exceto Sutekh. Ele (lhe) construiu um templo, um trabalho perfeito (para a) nfr                    (1,4)  (r) (n)HH r-(gs) pr n nsw (ippy)/ anx wDA snb iw.f (Hr) xa eternidade, ao lado da casa do rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!). E ele aparecia em glória,                    lacuna (tp)-hrw r rdit mAa m-mnt n swtx cedo pela manhã, para fazer oferenda (...) diariamente a Sutekh, (enquanto)                                 iw nA srw nw pr-nsw anx wDA snb Xr mHyw mi i.ir(y)t os dignitários do palácio (vida, prosperidade, saúde para ele!) portavam (lit. debaixo de) guirlandas, como aquilo que é feito                        (m) Hwt-nTr n pA-ra-Hr-Axty no templo de Pra-Harakhty, muito exatamente.    (1,5)      Hr-aqA sp 2                ist rf ir (nsw) (ippy)/ anx wDA snb iw ib.f r (hAb) Então, quanto ao rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!), ele desejava enviar                        mdt thA (n) nsw (sqn-n-ra)/ (anx wDA snb pA) wr n uma mensagem agressiva ao rei Seqenenra (vida, prosperidade, saúde para ele!), o Príncipe da 122                                 niwt rsyt xr-(i)r m-(xt) hrww qnw Hr-sA Cidade do Sul. Então, após muitos dias (se pasarem) depois disso,         nn              (1,6) wn.(i)n nsw ( (ippy)/ anx wDA snb Hr dit aS.(tw n) o rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) fez com que se convocasse     Lacuna               Lacuna  (srw) nw pAy.f (...) st hAb (...) smiw n m(dt) os dignitários do seu (palácio?) (e propôs-lhes fazer) enviar uma mensagem (...), uma reclamação oral                Lacuna      (1,7) Lacuna (...) itrw (...) sSw rxyw-(xt) (...) (relativa ao) rio, (...) os escribas, os sábios (...)                       Lacuna Lacuna (1,8)  Lacuna (...) srw (a)Ay(w) (...) ( (i)ty)/ / anx wDA snb (nb.n) (e) os dignitários maiores (lit. grandes) (...) (Eles disseram: ) “..., (ó) soberano (vida, prosperidade, saúde para ele!), nosso senhor! (...)                     Hn(w) dbyw (nty m pA ‘(...) o pântano de hipopótamos que está a leste da wbn n                              (1,9)                Lacuna         niwt rsyt b(n) st Hr dit iwt.tw n.n tA qd(t) m hrw m gr)H Cidade do Sul, (pois) eles não deixam vir-nos o sono, de dia (nem) de noite, (já que) (iw xrw) (m) (msDr) (niwt.n) (...) (wn.i)n pA wr n (niw)t (rsyt) o (seu) ruído (lit. voz) (está) no ouvido (dos de) nossa cidade’ ”. (...) Então o Príncipe da Cidade do Sul           Lacuna (1,10) Lacuna Lacuna (2,1) (...) (...) wD (...) Hna.f m nby (...) um decreto (...) (Amon estava) com ele como protetor.                             nn hn.f (sw) n nTr nb nty m Ele não se confiava a todos os deuses do país inteiro, pA tA r-Dr.f 123                      wpw(-Hr) imn-ra nsw nTrw xr-ir m-xt exceto a Amon-Ra, rei dos deuses. Então, após (se passarem)                 hrww qnw Hr-sA vários dias depois disso, o rei nn        (2,2)  wn.in nsw                        (ippy)/ anx wDA snb Hr hAb n pA wr n niwt rsyt (Hr) Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) enviou (uma mensagem) ao Príncipe da Cidade do Sul, a respeito                     pA smiw n mdt i.Dd n.f nAy.f sSw da reclamação oral que lhe haviam sugerido (lit. dito) os seus escribas                   (2,3)    rxyw-xt xr-ir pA e sábios. Então, (quando) o mensageiro do rei wpwty n (n)sw                    ( (i) ppy)/ anx wDA snb Hr spr (r) pA wr n niwt rsyt Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) chegou até o Príncipe da Cidade do Sul,                            wn.in.t(w Hr) iTAy.f m-bAH pA wr n niwt rsyt levou-se-o à presença (lit. diante) do Príncipe da Cidade do Sul. (2,4)                           wn.in.tw Hr Dd n pA wpwty n nsw (ippy)/ Então, Seqenenra (lit. Alguém) disse ao mensageiro do rei Apepi             anx wDA snb (h)Ab.k (r-)ix r niwt rsyt (vida, prosperidade, saúde para ele!): “Para que foste enviado à Cidade do Sul?           pH.k wi (m) nA mSaw Hr-ix wn.in pA wpwty Por que me abordas nestas (lit. nas) viagens?” O mensageiro então                     124     (2,5)              Hr Dd n.f (i)n nsw (ippy)/ anx wDA snb (i.)hAb n.k lhe respondeu (lit. disse): “Foi o rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) que te enviou (uma mensagem),                      r-Dd imi tw r(wi).tw Hr tA Hnw dbyw nty dizendo: ‘Faze (lit. Faze, tu,) com que seja abandonado (lit. com que se afastem do) pântano de hipopótamos que                      m pA wbn n niwt pA-wn bn st (Hr) (está) a leste da Cidade (= Tebas), já que eles não deixam dit                       (2,6) iwt.tw n.i tA qdt m hrw m grH vir-me o sono, de dia (nem) de noite. O barulho (deles) está iw xrw                                (m) msDr niwt.f wn.in pA wr n niwt rsyt Hr sgA no ouvido (dos de) sua cidade.’ ” Então o Príncipe da Cidade do Sul ficou estupefato                     (2,7)    m At aA(t) iw.f (Hr) xpr iw bw rx.f an(n)(-smi) por um longo momento: acontecia-lhe não saber replicar (lit. devolver)                        n pA wpwty n nsw (ippy)/ anx wDA snb wn.in ao mensageiro do rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!). Então o pA                             wr n niwt rsyt Hr Dd n.f ist i.iri pAy.k nb anx wDA snb Príncipe da Cidade do Sul lhe disse: “Assim, foi o que o teu senhor (vida, prosperidade, saúde para ele!)       (2,8)       sDm md(t) Hr (tA Hnw ouviu falar a respeito do pântano que (está) a nty m p)A                           w(b)n n niwt rsyt m pAy wn.(in pA wpwty leste da Cidade do Sul, nesses termos (lit. dessa [maneira])?” Então o mensageiro 125                           Lacuna Lacuna Hr Dd n.f) (...) (nA m)dt i.hAb.f (w)i Hr-r.sn lhe disse: “(Pensa sobre) os assuntos a respeito dos quais ele me enviou (lit. os assuntos que ele enviou-me a respeito deles.)” (2,9)                             (wn.in pA wr n niwt rsyt Hr dit) iry.tw xrt Então o Príncipe da Cidade do Sul fez com que cuidassem do       n p(A                   wpwty n nsw (ippy)/ anx wDA snb m xt (nbt) nfrt mensageiro do rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) com todas as coisas boas:                Lacuna (2,10) Lacuna   iwf Say(t) (...) ... .k ir pA carne, bolos (...). (...) “ ‘Quanto a tudo aquilo que tu nty nb iw.k                <     (2,11) Lacuna   (r) Dd n.i iw.i (r) ir(t).f kA.k (n.f) me disseres, eu o farei’− assim tu lhe dirás.” (...) Então (...) wn.in                               pA wpwty n nsw (ippy)/ anx wDA snb Hr fAy.f o mensageiro do rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) pôs-se a    r              (3,1)    mSa r pA nty ( pAy.f) nb anx wDA snb im(.f) viajar em direção ao lugar onde estava o seu Senhor (vida, prosperidade, saúde para ele!).                                    aHa.n pA wr n niwt rsyt Hr dit aS.tw n nAy.f srw aAyw Então o Príncipe da Cidade do Sul fez com que fossem convocados os seus dignitários mais graduados (lit. grandes),              (3,2)      m-mitt waw nb HAty(w) swt iw.f Hr (wHm) assim como todos os oficiais principais (lit. primeiros) a seu serviço (lit. dele). Ele repetiu- 126                         n.sn smiw nb mdt i.hAb n.f nsw ( ippy)/ -lhes todas as reclamações orais a respeito das quais lhe enviara (uma mensagem) o rei Apepi                          anx wDA snb Hr r-r.sn aHa.n sn gr m-r-wa (vida, prosperidade, saúde para ele!). Eles se calaram unanimemente            (3,3)         m At aA(t) nn rx.sn wSb por um longo momento e não souberam responder-lhe, bem              n.f nfr              m-r-pw bin wn.i(n) nsw (ippy)/ anx wDA snb Hr hAb n ou mal. Então, o rei Apepi (vida, prosperidade, saúde para ele!) enviou (uma mensagem) a (...) 127 3. OBSERVAÇÕES DO TRADUTOR Na forma em que o temos, o texto é da XIXa dinastia, copiado sob o faraó Merneptah (1213-1203 a.C.). Trata-se da parte inicial de um conto que trata, ficcionalmente, Intermediário, de em personagens históricos meados século do do XVI final a.C.: do o Segundo faraó Período hicso Apepi (aproximadamente 1585-1542 a.C.), da XVa dinastia, e o rei Seqenenra (morto por volta de 1555 a.C., aparentemente em batalha, após um reinado que teria sido de quatorze anos), da XVIIa dinastia tebana, que de início pagava tributo ao primeiro. O conto parece referir-se ao início das hostilidades que, mais de duas décadas mais tarde, resultariam na expulsão do Egito dos hicsos que, de sua capital de Avaris, governavam o Delta diretamente e submetiam o Médio e o Alto Egito a tributação. O único manuscrito disponível contém só o início do texto: o aluno que o copiou interrompeu a cópia em determinado ponto. Tal aluno cometeu numerosos erros ao copiar, além de que a parte copiada nos chegou com múltiplas lacunas importantes. Seja como for, a linguagem do conto é um neoegípcio bastante pobre. Este texto ficcional é o primeiro exemplo histórico que temos de um motivo literário que ressurgiria muitas vezes, depois, em diferentes literaturas − orientais de início, mas chegando até La Fontaine − de diversos períodos: a de uma disputa entre governantes mediante exigências ou adivinhações absurdas ou enigmáticas enviadas por algum deles a um outro, ou trocadas entre eles, seguidas de sanções. Com efeito, como poderia o ruído de hipopótamos a leste da cidade de Tebas, no Alto Egito, ser ouvido em Avaris, no Delta?! Nota-se também, no conto egípcio, uma oposição entre deuses paralela àquela dos reis que lhes prestam um culto monolátrico: de um lado Apepi e Sutekh (forma que o deus Set, assimilado a uma divindade asiática, assumiu no Delta); do outro, Seqenenra e Amon-Ra de Tebas. Em se tratando de um texto da XIXa dinastia, é provável que, em alguma das partes perdidas para nós, a supremacia de Amon-Ra se impusesse de algum modo. 128 4. ANÁLISE POR BLOCOS SEMÂNTICOS 1 (pp. 1-2) (1,1) xpr swt wn.in tA n kmt m iAdt iw nn wn nb anx wDA snb m nsw (n) hAw xpr ist rf ir nsw (sqn-n-ra)/anx wDA snb sw m (HqA)/ anx wDA snb n niwt rsyt iAdt m dmi aAmw iw wr (1,2) (ippy)/ nx wDA snb m Hwt-wart iw xr-pw abA n.f pA tA r-Dr.f Xr bAkw.sn mHtt mmitt Xr (xt) nbt nfr(t) n tA-mHy A primeira palavra desta passagem é um verbo no sDm.f Perfectivo Ativo sem sujeito, xpr, usado narrativamente, tendo a seguir a enclítica swt, com o sentido de: “Acontecia, pois”. Segue-se uma frase inicial numa forma verbal narrativa arcaica (isto é, típica do médio egípcio e, não, do neoegípcio), a forma sDm.in.f com objeto direto substantival (ao se tratar de um predicação de existência, não há sujeito), por sua vez seguido por um complemento circunstancial (preposição + Infinitivo): wn.in tA n kmt m iAdt. Esta frase principal subordina uma que funciona como proposição circunstancial subordinada causal virtual: iw nn wn nb anx wDA snb m nsw (n) hAw. Esta subordinada, cujo caráter circunstancial é indicado pela partícula que a introduz, constrói-se com uma predicação de existência negativa de forma arcaica (do egípcio médio e não do neoegípcio). Sendo o objeto direto uma referência a um “senhor” que é na verdade o rei, segue-se a saudação ritual aos faraós (“que ele viva, prospere e tenha saúde!”, construída com três Estativos). A frase traz um complemento circunstancial (preposição + substantivo), explicitado por um genitivo indireto. Após uma nova ocorrência de xpr como um sDm.f Perfectivo Ativo sem sujeito de uso narrativo, um corte no discurso mediante uma proclítica seguida de enclítica de reforço introduz uma antecipação do sujeito de uma frase de predicado não verbal (com o predicado na forma de preposição + substantivo); à primeira vista pareceria um Presente 1 preposicional (a preposição retoma o sujeito mencionado) cujo predicado se constrói com preposição + substantivo (tal substantivo sendo completado por um genitivo indireto, após saudação ritual), mas em tal caso o substantivo viria precedido por artigo definido. A frase descrita é: ist rf ir nsw (sqn-n-ra)/anx wDA snb sw m (HqA)/ anx wDA snb n niwt rsyt. De novo, como se fala de um governante que, neste contexto, é chamado de rei, aparecem mais duas vezes a saudação ritual já indicada. Doravante deixaremos de mencionar tais saudações rituais, a não ser que haja para isso uma razão: fica entendido que elas acompanham todos os nomes reais ou expressões que remetam de algum modo a reis. Uma frase inicial não verbal, construída com predicado que traz preposição m + substantivo (seguido de genitivo direto), informa que reinava a aflição na cidade dos asiáticos, isto é, Avaris: iAdt m dmi aAmw. A frase seguinte pode, talvez, considerar-se uma subordinada circunstancial causal, introduzida por iw. Trata-se de uma frase não verbal, cujo predicado se constrói com preposição m + substantivo composto (um locativo): iw wr (ippy)/ nx wDA snb m Hwt-wart. A frase seguinte, introduzida por iw e pela conjunção composta xrpw, tem como predicado um sDm.f Perfectivo Ativo seguido por um dativo pronominal que antecede o sujeito (um substantivo definido), vindo depois um complemento circunstancial de sentido adjetival, é complementada por duas frases não verbais, a primeira das quais tem o mesmo sujeito que a frase que precede, com predicado construído em ambos os casos pela preposição Xr + substantivo, estando o substantivo, na segunda proposição assim construída, completado por dois adjetivos e por um genitivo indireto: iw xr-pw abA n.f pA tA r-Dr.f // Xr bAkw.sn // mHtt m-mitt Xr (xt) nbt nfr(t) n tA-mHy. 129 2 (pp. 2-3) aHa.n nsw (ippy)/anx wDA snb (1,3) Hr irt n.f swtx m nb iw.f (Hr) tm bAk n nTr nb nty m pA tA r-Dr.f (wpw[-Hr]) swtx iw.f Hr qd Hwt-nTr m bAkw nfr (r) (n)HH r-(gs) pr n nsw (ippy)/ anx wDA snb (1,4) iw.f (Hr) xa (tp)-hrw r rdit mAa m-mnt n swtx iw nA srw nw pr-nsw anx wDA snb Xr Hyw mi i.ir(y)t (m) Hwt-nTr n pA-ra-Hr-Axty Hr-aqA sp 2 Este bloco semântico começa com uma forma continuativa narrativa arcaizante (ou seja, de construção mais do egípcio médio do que neoegípcia), a forma aHa.n N (esta letra substitui o substantivo sujeito) Hr sDm, no caso, aHa.n nsw (ippy)/anx wDA snb Hr irt n.f swtx m nb. À predicação segue-se um dativo pronominal e um objeto direto, completado por complemento circunstancial (preposição m + substantivo). Segue-se um Sequencial negativo, acompanhado de dativo, vindo a seguir proposição relativa introduzida pelo adjetivo nty, de predicado não verbal, vindo depois um complemento circunstancial introduzido por preposição que significa “exceto”: iw.f (Hr) tm bAk n nTr nb // nty m pA tA r-Dr.f (wpw[Hr]) swtx . Outro Sequencial expõe o fato de ter Apepi construído um templo para seu deus, completando-se o substantivo composto que significa “templo” por um complemento circunstancial que se assemelha a um aposto e contém um adjetivo epíteto e um complemento circunstancial de tempo, vindo a seguir um complemento circunstancial de lugar (que contém um genitivo indireto); separamos, a seguir, tais elementos do corpo principal da frase: iw.f Hr qd Hwt-nTr // m bAkw nfr (r) (n)HH // r-(gs) pr n nsw (ippy)/ // anx wDA snb. Mais um Sequencial serve para se referir à aparição do rei no templo, seguindo-se subordinada final construída com a preposição r + Infinitivo, seguindo-se objeto direto e dativo: iw.f (Hr) xa (tp)-hrw // r rdit mAa m-mnt n swtx. Uma subordinada, de predicado não verbal (preposição + substantivo), especifica a presença da corte nas cerimônias do templo, estando os funcionários engalanados; o sujeito é um substantivo, completado por genitivo indireto: iw nA srw nw pr-nsw anx wDA snb Xr Hyw. Dando mais detalhes sobre a ideia que transmite esta última subordinada, ela por sua vez é acompanhada por frase subordinada circunstancial comparativa, construída com um Partícípio Passivo (forma i.sDmyt ): mi i.ir(y)t (m) Hwt-nTr n pA-ra-Hr-Axty Hr-aqA sp 2, uma construção em que à predicação segue-se um complemento circunstancial de lugar (que contém um genitivo indireto) e um complemento circunstancial enfatizado por repetição. 3 (p. 3) ist rf ir (1,5) (nsw) (ippy)/ anx wDA snb iw ib.f r (hAb) mdt thA (n) nsw (sqn-n-ra)/ (anx wDA snb pA) wr n niwt rsyt xr-(i)r m-(xt) hrww qnw Hr-sA nn wn.(i)n nsw (1,6) ( (ippy)/anx wDA snb Hr dit aS.(tw n) srw) nw pAy.f (...) st hAb (...) smiw n m(dt) (1,7) (...) itrw (...) sSw rxyw-(xt) (...) srw (a)Ay(w) (...) Tendo explicado quem era o rei Apepi e quais as suas preferências religiosas, o texto agora começa a referir-se ao tema central do conto, que é o desafio que o rei hicso desejava enviar a Sequenenra, seu vassalo, o governante de Tebas. Como em outra ocasião já analisada, a primeira frase deste grupo é introduzida por uma proclítica com o reforço de uma enclítica, vindo a seguir uma antecipação do sujeito, que é o rei Apepi, ou, como depois fica explícito, o seu desejo de enviar uma mensagem hostil a Sequenenra. A predicação é um Futuro 3, seguido de objeto direto e de um dativo. Ao nomear Sequenenra, um aposto explica tratar-se do “príncipe da cidade meridional”, isto é, de Tebas. Eis aqui toda a construção: ist 130 rf ir (nsw) (ippy)/ // anx wDA snb // iw ib.f r (hAb) mdt thA (n) nsw (sqn-n-ra)/ (//anx wDA snb // pA) wr n niwt rsyt. Vem agora, no texto, uma frase indicativa de corte no tempo, xr-ir m-xt hrww qnw Hr-sA nn. Tal expressão se forma com os seguintes termos: (1) locução introdutória que consta de uma proclítica composta, xr-ir, muito usada em narrativas, podendo ser traduzida como “então”, ou, às vezes, deixada sem traduzir; (2) preposição composta m-xt , que significa “depois (de)”; (3) substantivo masculino plural não definido (ou seja, não precedido de artigo definido ou outro elemento de definição do substantivo) hrww “dias”; (4) adjetivo masculino plural qnw, “muitos”: em egípcio, o adjetivo concorda com o substantivo em gênero e número e vem habitualmente depois dele; (5) preposição composta Hr-sA , “depois (de)”, “após” (literalmente, significa “atrás (de)”); (6) demonstrativo masculino plural em função de neutro nn, “isto” (ao pé da letra, significa algo como “estas (coisas)”, ou “estes (acontecimentos)”). Após a expressão temporal em questão, temos a forma continuativo-narrativa arcaizante wn.in.f Hr sDm, que, como veremos, é mais do que abundante neste conto, neste caso com sujeito substantival; sendo o Infinitivo da predicação o do verbo que significa fazer acontecer, segue-se uma subordinada completiva em sDm.f Prospectivo Não Autônomo; a preposição n que vem a seguir é regência do verbo, vindo então um objeto direto com diversos elementos; havendo, no entanto, lacunas que prejudicam o entendimento, a seguir, de por que Apepi convocou os seus conselheiros. A construção descrita até aqui é: wn.(i)n nsw ( (ippy)/ //anx wDA snb // Hr dit // aS.(tw n) srw) nw pAy.f (...). O caráter lacunoso, ao continuar, prejudica o entendimento dos conselhos que o rei espera dos seus assessores: vê-se que têm a ver com uma reclamação a fazer que envolva o rio, o que é compatível com elementos que posteriormente aparecerão no texto; por fim, temos, após outra lacuna, especificações relativas aos conselheiros convocados por Apepi. Deixamos de analisar em detalhe esta parte lacunosa. 4 (pp. 3-4) (...) ((i)ty)/ anx wDA snb (1,8) (nb.n) Hn(w) dbyw (nty m pA wbn n niwt rsyt b(n) st Hr dit iwt.tw n.n tA qd(t) m hrw m gr)H (iw xrw) (m) (msDr) (1,9) (niwt.n) Pelo teor do que vem logo após as lacunas, vemos que, nelas, havia começado a resposta dos cortesãos à demanda do rei, já que o primeiro elemento preservado é um vocativo, seguido da saudação ao rei e de um aposto que significa “nosso senhor”. A construção da frase depende de elementos que as lacunas nos ocultam. Percebe-se uma relativa introduzida por nty e, na sequência da construção, um Presente 1 negativo, bn st Hr dit, que, pela presença no Infinitivo do verbo que significa fazer acontecer, exige uma completiva, construída anacronicamente com o Perfectivo (médio-egípcio) do verbo iw (“vir”), que acompanham um dativo, um objeto direto e dois complementos circunstanciais de tempo: b(n) st Hr dit // iwt.tw n.n tA qd(t) m hrw m gr)H. O conjunto é completado por uma proposição curcunstancial subordinada causal, de predicado não verbal (preposição + substantivo acompanhado de genitivo direto): (iw xrw) (m) (msDr) (niwt.n . 5 (p. 4) (...) (wn.i)n pA wr n (niw)t (rsyt) (...) (1,10) (...) wD (...) Hna.f m nby nn hn.f (sw) n nTr nb nty m pA tA r-Dr.f wpw(-Hr) imn-ra nsw nTrw 131 A narrativa agora se desloca para Tebas, com a finalidade de informar sobre Sequenenra, a que se atribui uma exclusividade monolátrica em favor de Amon que espelha, em posição simetricamente oposta, a de Apepi em favor de Sutekh. A construção apresenta, primeiro, um novo exemplo, incompleto, da forma continuativo-negativa arcaizante wn.in.f Hr sDm, também neste caso com sujeito substantival: (wn.i)n pA wr n (niw)t (rsyt) (...) . Deixando de lado o fragmento de frase que se conservou a seguir, o qual especifica que Amon estava com Sequenenra na qualidade de seu protetor, depois temos uma frase completa numa forma arcaica, isto é, um sDm.f Perfectivo Ativo negativo, negado por nn e não construído na forma neoegípcia habitual (bwpwy.f sDm): nn hn.f (sw) n nTr nb // nty m pA tA r-Dr.f wpw(-Hr) imn-ra nsw nTrw . A construção é próxima à anterior em que se fala da relação especial de Apepi com Sutekh (embora, naturalmente, falte lá, em aposto, o epíteto “rei dos deuses”, que aqui aparece por ser próprio de Amon-Ra). 6 (pp. 4-5) xr-ir m-xt hrww qnw Hr-sA nn (2,2)wn.in nsw (ippy)/ anx wDA snb Hr hAb n pA wr n niwt rsyt (Hr) pA smiw n mdt i.Dd n.f nAy.f sSw rxyw-xt (2,3) xr-ir pA wpwty n (n)sw ((i) ppy)/anx wDA snb Hr spr (r) pA wr n niwt rsyt wn.in.t(w Hr) iTAy.f m-bAH pA wr n niwt rsyt Nesta passagem, após expressão que indica corte temporal, já analisada anteriormente (xr-ir m-xt hrww qnw Hr-sA nn ), temos mais uma ocorrência da forma continuativo-negativa arcaizante já familiar, na frase: wn.in nsw (ippy)/ anx wDA snb Hr hAb n pA wr n niwt rsyt (Hr) pA smiw n mdt // i.Dd n.f nAy.f sSw rxyw-xt. Nesta construção, após a predicação, temos um dativo (que contém genitivo indireto) e um complemento circunstancial introduzido pela preposição Hr (omitida), cujo substantivo (com genitivo indireto) é completado por uma proposição relativa formada com a Forma Verbal Relativa, seguida de dativo e, depois, do sujeito plural (os escribas e sábios de Apepi). Após uma marca de inicialidade (a proclítica composta xr-ir ), ocorre, em Presente 1 de sujeito substantival (contendo genitivo indireto), a notícia de que o mensageiro de Apepi procurou o príncipe de Tebas: xr-ir pA wpwty n (n)sw ((i) ppy)/anx wDA snb Hr spr (r) pA wr n niwt rsyt. Chegado à cidade meridional, foi levado à presença do príncipe Sequenenra, o que é expressado mediante nova ocorrência da forma continuativo-narrativa que já achamos várias vezes: wn.in.t(w Hr) iTAy.f m-bAH pA wr n niwt rsyt, trazendo a construção, no final, um complemento circunstancial de lugar que contém um genitivo indireto. 7 (p. 5) (2,4) wn.in.tw Hr Dd n pA wpwty n nsw (ippy)/anx wDA snb (h)Ab.k (r-)ix r niwt rsyt pH.k wi (m) nA mSaw Hr-ix Nesta passagem, em construção continuativo-narrativa já vista e muito repetida no texto, anuncia-se que o príncipe Sequenenra dirigiu a palavra ao mensageiro do rei Apepi (wn.in.tw Hr Dd n pA wpwty n nsw (ippy)/anx wDA snb ). Note-se o uso de .tw como forma oblíqua de referir-se ao rei sem nomeá-lo. A fala direta de Sequenenra ao mensageiro começa com uma fase interrogativa que usa um sDm.f Perfectivo Passivo, seguido de sujeito (pronome sufixo) e este do elemento interrogativo (r-)ix, depois do qual vem um complemento circunstancial de lugar: (h)Ab.k (r-)ix r niwt rsyt. A fala do rei contém ainda uma segunda frase interrogativa, construída com um sDm.f Perfectivo Ativo, em que a 132 predicação é seguida de sujeito (pronome sufixo), objeto direto (pronome dependente) e complemento circunstancial de lugar; no final é que aparece o elemento indicador de interrogação, Hr-ir : pH.k wi (m) nA mSaw Hr-ix. 8 (pp. 5-6) wn.in pA wpwty Hr (2,5) Dd n.f (i)n nsw (ippy) anx wDA snb (i.)hAb n.k r-Dd imi tw r(wi).tw Hr tA Hnw dbyw nty m pA wbn n niwt pA-wn bn st (Hr) dit (2,6) iwt.tw n.i tA qdt m hrw m grH iw xrw (m) msDr niwt.f wn.in pA wr n niwt rsyt Hr sgA m At aA(t) iw.f (Hr) xpr iw bw rx.f (2,7)an(n)(-smi) n pA wpwty n nsw (ippy)/anx wDA snb Mais um emprego da forma continuativo-narrativa tão presente neste texto serve para indicar que, agora, o mensageiro de Apepi tomará a palavra, falando ao príncipe de Tebas (wn.in pA wpwty Hr Dd n.f ). A fala direta do mensageiro começa com uma construção participial com extraposição do complemento de agente, seguindo-se ao Particípio Ativo um dativo e expressão estereotipada que “significa “para dizer: ou seja, a fala do mensageiro pretende reproduzir a de Apepi. A construção é: (i)n nsw (ippy) anx wDA snb (i.)hAb n.k // r-Dd. O recado enviado a Sequenenra por Apepi por meio do mensageiro começa com um Imperativo seguido de pronome dependente como reforço. Sendo o Imperativo o do verbo que significa fazer acontecer, vem a seguir uma completiva em sDm.f Prospectivo Não Autônomo, seguindo-se complemento circunstancial cujo sentido é ampliado por uma relativa introduzida por nty , cuja função é indicar uma localização: imi tw // r(wi).tw Hr tA Hnw dbyw // nty m pA wbn n niwt. Esta construção é acompanhada por uma proposição circunstancial subordinada causal, introduzida por preposição composta e construída com frase em Presente 1 negativo; sendo o Infinitivo de tal predicação o do verbo que significa fazer acontecer, segue-se uma completiva em sDm.f Perfectivo de construção típica do egípcio médio, predicação seguida de dativo, objeto direto e complemento circunstancial de tempo: bn st (Hr) dit // iwt.tw n.i tA qdt m hrw m grH. A fala do mensageiro conclui com outra subordinada causal, virtual, de predicado não verbal (preposição m + substantivo a que se segue um genitivo direto): iw xrw (m) msDr niwt.f. Diante do estranho recado enviado por Apepi, o príncipe de Tebas fica estupefato, sem saber o que responder ao que dissera o mensageiro. Isto se expressa por meio de mais uma ocorrência da onipresente construção continuativo-narrativa já habitual para nós, acompanhada de complemento circunstancial de tempo: wn.in pA wr n niwt rsyt Hr sgA m At aA(t). Um Sequencial com o auxiliar xpr antecede uma frase em Aoristo negativo que sublinha que Sequenenra não sabia o que dizer (a construção obriga, após o verbo saber, que exige continuação, a uma completiva no Infinitivo de um verbo composto), seguida de dativo contendo um genitivo indireto: iw.f (Hr) xpr // iw bw rx.f // an(n)(-smi) n pA wpwty n nsw (ippy)/// anx wDA snb . 9 (p. 6) wn.in pA wr n niwt rsyt Hr Dd n.f ist i.iri pAy.k nb anx wDA snb sDm md(t) Hr (tA Hnw nty m p)A w(b)n n niwt rsyt m pAy wn.(in pA wpwty Hr Dd n.f) (...) (nA m)dt i.hAb.f (w)i Hr-r.sn 133 Quando Sequenenra por fim toma a palavra (mais uma continuativo-narrativa: wn.in pA wr n niwt rsyt Hr Dd n.f ), o que diz faz notar que ainda não se recuperou do estupor, já que sua fala não passa de uma glosa daquela que o mensageiro transmitiu como sendo o recado enviado por Apepi. A construção, após a proclítica inicial, usa um Tempo Segundo (cuja predicação é cortada em duas partes pelo sujeito e pela saudação ritual ao rei) destinado a tematizar o verbo e rematizar o complemento circunstancial: ist i.iri pAy.k nb // anx wDA snb // sDm md(t) Hr (tA Hnw nty m p)A w(b)n n niwt rsyt m pAy. Note-se o uso pronominal de pAy, no final da construção. Na medida em que a função do Tempo Segundo é enfatizar o complemento circunstancial em detrimento do verbo, uma tradução literal, invertendo a ordem egípcia da frase, seria (sublinhamos o que foi rematizado): “Assim, foi a respeito disto −do pântano que está a leste da Cidade do Sul− (que) o teu senhor ouviu falar?” Nova ocorrência da forma continuativo-narrativa indica nova fala do mensageiro (wn.(in pA wpwty Hr Dd n.f) ). O entendimento da fala em questão é prejudicada por uma lacuna. Falta o verbo da frase principal, mas está presente uma relativa construída com a Forma Verbal Relativa, tendo como sujeito um pronome sufixo, seguindo-se objeto direto (pronome dependente) e complemento circunstancial: i.hAb.f (w)i Hr-r.sn. 10 (pp. 6-7) (2,9) (wn.in pA wr n niwt rsyt Hr dit) iry.tw xrt n p(A wpwty n nsw (ippy)/anx wDA snb m xt (nbt) nfrt iwf Say(t) (...) .k ir pA nty nb iw.k (r) Dd n.i iw.i (r) ir(t).f kA.k (n.f) (2,11) (...) wn.in pA wpwty n nsw (ippy)/anx wDA snb Hr fAy.f r mSa r pA nty (3,1) ( pAy.f) nb anx wDA snb im(.f) O príncipe deTebas entrega o mensageiro de Apepi aos cuidados de seus criados, para que o alimentem. A construção reitera a sempiterna construção continuativo-narrativa; como o verbo é o que quer dizer fazer acontecer, segue-se uma completiva em sDm.f Prospectivo Não Autônomo, onde a predicação é seguida de objeto direto (que contém um genitivo indireto) e complemento circunstancial, sendo que há uma lacuna no final da frase: (wn.in pA wr n niwt rsyt Hr dit) // iry.tw xrt n p(A wpwty n nsw (ippy)/ //anx wDA snb // m xt (nbt) nfrt iwf Say(t) (...). A lacuna esconde também a sequência imediata da narração, que muito provavelmente descrevia o fato de ser depois o mensageiro, antes de partir, reconduzido à presença de Sequenenra: tal inferência vem de que, ao terminar a lacuna, o que temos é a fala interrompida do príncipe de Tebas ao mensageiro. Conserva-se completa uma construção em prótase e apódose (na lógica “quanto a... // então...”), estando tanto a prótase (que se refere a eventuais ordens que Apepi torne a enviar) quanto a apódose (que fala da obediência de Sequenenra a tais ordens) construídas com o Futuro 3: ir pA nty nb iw.k (r) Dd n.i // iw.i (r) ir(t).f . A seguir, uma expressão estereotipada (“será o que tu lhe dirás”, ou seja, o que o mensageiro reproduzirá no futuro a Apepi como mensagem de Sequenenra) indica ter ocorrido uma suposta fala futura: kA.k (n.f). A última frase desta passagem indica que o mensageiro viajou até onde estava o seu senhor, ou seja, Apepi, em mais um exemplo da repetida construção continuativo-narrativa, completada por uma subordinada final construída com preposição r + Infinitivo, seguida por uma relativa que compõe expressão indicadora do lugar onde uma pessoa está: wn.in pA wpwty n nsw (ippy)/ // nx wDA snb // Hr fAy.f // r mSa // r pA nty ( pAy.f) nb // anx wDA snb // im(.f). 11 (p. 7) 134 aHa.n pA wr n niwt rsyt Hr dit aS.tw n nAy.f srw aAyw m-mitt waw nb HAty(w) swt iw.f Hr (3,2) (wHm) n.sn smiw nb mdt i.hAb n.f nsw (ippy)/anx wDA snb Hr r-r.sn aHa.n sn gr m-r-wa m At (3,3) aA(t) nn rx.sn wSb n.f nfr m-r-pw bin Variando por fim a forma continuativo-narrativo depois de tantas ocorrências de wn.in.f Hr sDm, agora aparece outra do mesmo tipo, aHa.n.f Hr sDm (com sujeito substantival), para indicar que, como antes fizera Apepi, agora é Sequenenra quem convoca os seus conselheiros, desejoso de decidir o que fazer em resposta ao desafio do rei hicso: aHa.n pA wr n niwt rsyt Hr dit // aS.tw n nAy.f srw aAyw m-mitt waw nb HAty(w) swt. Note-se a completiva em sDm.f Prospectivo Autônomo após o verbo principal, por ser aquele que significa fazer acontecer; e também que, no final da completiva, os convocados são indicados como “pertencentes” ao príncipe, já que swt significa “dele”. Reunidos os conselheiros, o príncipe toma a palavra, o que é indicado por frase no Sequencial cujo objeto direto é complementado por uma Forma Verbal Relativa cujo sujeito é o rei Apepi: iw.f Hr (wHm) n.sn smiw nb mdt // i.hAb n.f nsw (ippy)/// anx wDA snb // Hr r-r.sn . Note-se que o complemento circunstancial extraposto para o final, Hr r-r.sn, remete, não à relativa, mas ao objeto direto da frase que antecede, smiw nb mdt. Tendo escutado a surpreendente demanda de Apepi acerca do lago dos hipopótamos, o texto informa que os conselheiros não souberam responder bem ou mal, ou seja, emudeceram. São duas frases. A primeira é um Presente 1 com sujeito no Estativo, introduzida por auxiliar arcaico e seguida de um advérbio composto como complemento circunstancial e por um complemento circunstancial de tempo: aHa.n // sn gr m-r-wa m At aA(t). A segunda, um sDm.f Perfectivo Ativo negado (em forma arcaica) por nn, exige completiva por não ter o verbo que significa saber sentido completo, estando a completiva em questão construída com o Infinitivo wSb acompanhado de um dativo e de um complemento circunstancial: nn rx.sn // wSb n.f nfr m-r-pw bin. 12 (p. 7) wn.i(n) nsw (ippy)/ anx wDA snb Hr hAb n (...) Esta última frase, que se preservou só parcialmente, mostra que a ação deslocar-se-ia de novo para Avaris, já que diz que o rei Apepi enviou uma mensagem (a forma empregada é a última ocorrência da construção continuativo-narrativa wn.in.f Hr sDm, com sujeito substantival). 135